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CRÍTICA
Humor na contramão da propaganda
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
A Sony vem exibindo nas
noites de segunda-feira
duas excelentes séries cômicas,
que estão totalmente na contramão da propaganda dos modos
de vida norte-americanos, matéria-prima de 90% dos seriados.
"Whoopi" e "Becker", ambas já
canceladas nos EUA, são uma espécie de lado avesso da idéia do
bem-estar norte-americano.
Em primeiro lugar, porque as
séries apostam na dupla humor e
crítica. Vão um pouco além dos
gracejos histéricos que dominam
boa parte das séries ditas cômicas e tentam usar o riso como arma, se não exatamente de reflexão, de algum tipo de incômodo.
Em segundo lugar, porque ali
sim há personagens cujos desajustes são impossíveis de serem
glamourizados.
Whoopi Goldberg, estrela da
série batizada com seu prenome,
é daquelas comediantes mais ou
menos desperdiçadas pelo cinema, que ou bem lhe dá papéis
grandes em filmes ruins ou pequenos em filmes melhores.
Desbocada e sarcástica, Whoopi faz piada de si mesma o tempo
todo -mulher, negra, de esquerda etc. É justamente na dupla condição de mulher e negra
que seus ataques ao politicamente correto ficam ainda mais certeiros. Na série, ela é Mavis Rae,
uma ex-cantora se torna dona de
um hotel meio decadente em
Manhattan.
Ao lado de um irmão conservador e desempregado, da cunhada
branca que se veste e fala como
uma negra do Bronx e de um empregado recém-chegado do Irã,
Mavis Rae passa em revista de
maneira impiedosa a atmosfera
extra-moralizante da sociedade
norte-americana e os desacertos
do governo Bush.
Aliás, o próprio presidente foi
alvo de mais de uma gozação ao
longo da série. Numa Nova York
difícil de ver na TV -dura, segregada, pobre-, os personagens à margem de "Whoopi" representam o outro lado da "city"
glamourizada e fashion da série
de Sarah Jessica Parker. Durou
pouco, é claro -foram só 13 episódios-, o que é uma pena, pois
os diálogos afiados e a presença
entre perplexa e crítica de Whoopi fazem falta num cenário onde
conservadorismo travestido de
cultura pop dá o tom.
"Becker" conseguiu durar bem
mais, seis temporadas, o que é de
espantar, porque a série tinha
um humor demolidor e corrosivo. A série do médico mau reclamão também se passava numa
Nova York não-turística, no
Bronx, e também fazia da ironia
pesada sua matéria-prima.
O doutor Becker, antípoda do
médico televisivo bem-sucedido
ou heróico, não fazia concessão
alguma aos não-me-toques verbais em relação às diversas minorias e às deficiências de corpo ou
de alma.
Curiosamente, "Becker", cujo
humor ácido estava quase à altura de "Seinfeld", sempre teve menor atenção da crítica. O que depõe contra esta, pois indica que
também aqueles que escrevem
sobre a televisão se deixam levar
pelo óbvio.
biabramo.tv@uol.com.br
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