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Memória/Cyd Charisse
Ela pôs o mundo de ponta-cabeça
"Femme fatale" de filmes como "A Roda da Fortuna" e "Cantando na Chuva" morreu anteontem
CRÍTICO DA FOLHA
Primeiro houve Ginger
Rogers, que nos anos 30
parecia capaz de harmonizar cada um de seus movimentos aos de seu partner,
Fred Astaire. Depois vieram
Eleanor Powell e seu incrível
sorriso, Ann-Miller, ou mesmo
a rainha das piscinas, Esther
Williams. Com aquela energia
de cheerleader do pós-guerra,
comandavam a sensualidade ligeira e arrebatadora dos grandes musicais da Metro, como
que mostrando ao mundo a vitalidade da cultura americana.
Depois é que veio Cyd Charisse.
Se começou a surgir nos anos
40, inclusive com uma breve
aparição em "Ziegfeld Follies",
na versão de 1946, foi na década
seguinte que impôs seu tipo.
Em vez da bailarina agitada de
tantos musicais, o que se via na
tela era a imagem madura de
uma mulher em quem beleza e
mistério se equivaliam.
Foi assim em "Broadway Melody", o célebre número de
"Cantando na Chuva" (1952),
em que aparece ao lado de Gene
Kelly, que também co-dirigiu o
filme com Stanley Donen: podia lembrar Louise Brooks, pelo corte de cabelo, ou uma garota de gângster, pela gestualidade -compunha, de todo modo,
uma magnífica caricatura da
"femme fatale" que nunca foi
na vida real (bem ao contrário,
seu segundo casamento, com o
cantor Tony Martin, durou
mais de meio século).
Seja como for, quando joga
sua perna para o alto, não há na
platéia quem, até hoje, não sinta o mundo virar de ponta-cabeça. Nada mau para essa garota nascida em 1921, em Amarillo, Texas, com o nome de Tula
Ellice Flinkea, e que começou a
estudar balé na infância para se
tratar das decorrências de uma
poliomielite.
Embora se tratasse de um
número mudo, "Broadway Melody" foi mais do que suficiente
para que suas qualidades de
bailarina, a beleza do rosto e,
em particular, das pernas, fossem notadas e alçadas, no ano
seguinte, ao primeiro papel feminino de "A Roda da Fortuna", talvez a obra-prima de Vincente Minnelli em matéria de
musicais, e ela entrasse de uma
vez por todas para a lista das
principais estrelas de Arthur
Freed, o produtor dos grandes
musicais da MGM.
Fred Astaire, no mais, mostrou-se encantado de estar com
ela em "Dançando no Escuro",
um dos números mais célebres
do gênero, em que Charisse impôs sua gestualidade firme e ao
mesmo tempo delicada. Em seguida, ela encadeia "A Lenda
dos Beijos Roubados" (1954),
com Minnelli, e "Dançando nas
Nuvens" (1955), com Kelly e
Donen.
"Meias de Seda"
A série de aparições notáveis
em musicais esgota-se provavelmente em "Meias de Seda"
(1957), de Rouben Mamoulian,
musical muito agradável, mas
não genial como "Ninotchka", a
comédia em que se inspira e
que Ernst Lubitsch havia dirigido logo antes da Segunda
Guerra Mundial. Na verdade, a
era dos grandes musicais estava agonizando.
Charisse procurou se afirmar
como atriz dramática, e em alguns momentos com brilho, como no notável "A Bela do Bas-Fond" (1958), de Nicholas Ray,
em que faz com desenvoltura a
garota de programa que tenta
mudar a vida do advogado de
um gângster. Mas é um pouco
como se, tendo marcado tanto
como bailarina, já não fosse
possível voltar atrás. A participação em "A Cidade dos Desiludidos" (1962), um drama dirigido por Minnelli, podia ser o sinal definitivo da transformação
em atriz, mas é antes de tudo
sintomática de seu declínio,
pois é de uma Hollywood decadente e de semideuses crepusculares que trata o belo filme.
(INACIO ARAUJO)
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