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CONTARDO CALLIGARIS
Pichações
O pichador impõe sua assinatura na cidade como as grifes tentam fazê-lo no corpo da gente
NA SEMANA passada, em São
Paulo, um estudante de artes
visuais da Belas Artes recrutou 40 pichadores para pichar sua
escola. Ele declarou que esse seria
seu trabalho de conclusão de curso,
"uma intervenção para discutir os limites da arte e o próprio conceito de
arte". A "prova" foi interrompida
por seguranças e pela polícia.
Nos anos 1950, em Milão, vi minha primeira pichação. Era um resto
do passado. O fascismo (sobretudo
em seus sobressaltos finais, em
1944) escrevia motos triunfalistas
pelos muros da parte da Itália que
ainda controlava. No caso, a escrita
original dizia "venceremos", assinado pelo "M" de Mussolini. Alguém
completara a inicial "M" de maneira
que o signatário daquela patética declaração fosse Macário, um comediante famoso. O regime tinha coberto a pichação com uma mão de
tinta, mas ela continuava legível.
Duplo escárnio: na pichação e na futilidade da tentativa de apagá-la.
Nos anos 1960, pichei a minha
parte. Já contei esta história: numa
noite de 68, com amigos, cobri a universidade de Milão com o nome de
um novo semanal: "Servir ao Povo".
Outros pichadores, em horas mais
altas do que as da gente, acrescentaram, embaixo de nossas pichações,
um comentário (com o qual, aliás, eu
concordava): "Eu não sirvo a ninguém, que o povo se sirva sozinho".
Nesses dois casos, as pichações
eram políticas: tentavam envolver o
leitor no diálogo e, eventualmente,
na ação.
As coisas mudaram. Nos anos
1980, no metrô de Nova York, os vagões eram cobertos por dois tipos de
"intervenções" (que nem sempre
eram fáceis de distinguir). Os grafites quebravam a monotonia urbana
inventando e impondo uma revolta
estética. As pichações propriamente
ditas eram "tags", assinaturas: delimitavam, no espaço público, as zonas de influência e de alcance das
gangues -como quando um cachorro demarca seu território depositando um pingo de urina em cada poste.
A resposta da prefeitura foi o trabalho incansável de apagar; o cuidado
com a coisa pública não desistiria:
"A rua é de todos -se você a assina
de noite, apagaremos seu nome de
dia, a cada dia".
Claro, a distinção entre grafites e
pichações não é estanque. Um pichador, como Jean-Michel Basquiat, tornou-se um grande artista,
em grafites e telas, e algumas raras
pichações têm uma beleza caligráfica. Além disso, nem todos os pichadores de hoje são apenas "assinatários" compulsivos; alguns se consideram vanguarda artística -devem
pensar, por exemplo, que eles assinam os muros como Marcel Duchamp podia assinar um urinol e,
pela virtude de sua assinatura,
transformá-los em arte.
Mas o gesto de Duchamp era, entre outras coisas, a denúncia irônica
e premonitória de uma arte em que
a assinatura do artista contaria mais
do que o objeto produzido. Ao passo
que, a partir dos anos 1980, em sua
grande maioria, os "tags" (marcas e
assinaturas) parecem participar do
espírito da época: eles manifestam
uma paixão abstrata de marcar o
mundo não por mérito ou por graça,
mas a ferro e fogo. No fundo, a vontade de pichar, hoje, é o equivalente
"hip", "pop" e violento, no hábitat
urbano, do que leva as grifes a querer "tatuar" o corpo da gente.
Alguém dirá que o pichador, numa
sociedade de "egos" vaidosos, tenta
apenas conquistar um lugar ao sol.
Cá entre nós, não é verdade que, no
Brasil de hoje, por mais desigual e
injusto que o país seja, o jeito que sobra para deixar sua marca consista
em contribuir à feiúra e à brutalidade ambientes pichando a assinatura
da gente. Há mais o que fazer, inclusive no campo das intervenções urbanas não autorizadas pelo poder
público.
Ao jovem estudante da Belas Artes, aconselho que se debruce sobre
as "intervenções" produzidas o tempo todo por artistas nacionais. Uma
que acho tocante, entre tantas, é a de
Tom Lisboa com suas polaroides invisíveis, em Curitiba (www.sinTOMnizado.com.br/tomlisboa).
Se eu fosse a Belas Artes, constituiria um júri isento de artistas, arquitetos e professores e proporia
ao candidato um teste: que ele olhe
para dez fotografias da paisagem
urbana paulistana e diga não o que
ele conhece (isso, provavelmente,
ele consideraria intolerável e repressor), nem suas especulações
sobre arte ou sociedade, mas, simplesmente, o que ele vê. Se ele souber ver, bom, que sua pichação valha como trabalho conclusivo.
Afinal, ele está terminando um curso
de artes visuais.
ccalligari@uol.com.br
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