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NINA HORTA
Uma intrusa na casa do banqueiro
Pôs-se a andar como se tivesse medo de escorregar. Foi saindo confusa, procurando um buraco
RUMEI PARA o ensaio de uma
festa. O que é um ensaio? É
um simulacro do que vai
acontecer no dia seguinte. Não há
ensaios da noiva entrando na igreja,
provas do vestido, "rehearsals" de
músicas, de shows, por que não haveria um do almoço de gala? Afinal,
até o presidente da República é capaz de vir, prometeram e desprometeram, mas nunca se sabe com
certeza absoluta. O senador vem.
Tudo feito para evitar imprevistos. Por mais cedo que você chegue, está sujeito a surpresas. Afinal, são detalhes demais, muitas
flores, muitas vasilhas para caber
em mesas e aparadores de laca cor
de vinho. E o tempo, o tempo, é
melhor já deixar algumas coisas
prontas, ou ensaiar, porque na hora já se sabe tudo.
Chegamos desavisadas. O apartamento é daquelas fortalezas dos
Jardins em que os porteiros não
estão lá para facilitar a sua entrada,
como seria de prever. Estão lá para
desconfiar que o Bin Laden chegou, disfarçado de Dona Benta. E
governam seus mundinhos de dentro de gaiolas. Primeira gaiola, segunda gaiola, corredor estreito, tomam nota dos nomes, dos CICs,
mordendo o lápis em dificuldade
insana. E, aí, depois de muito esperar pelo material, que também passa por suspeitas, pois cozinha tem
muita faca, quase não sobra tempo
para o ensaio.
A idéia é que a comida seja brasileira, com uns toques delicados de
fusão com outras terras, mas as flores são francesas, vieram do Midi.
São lavanda, e não a lavanda que já
temos aqui, não. Veio cheirosinha,
de avião, morta de medo. Lilás, só o
nome já é uma estranheza, e mais
flores de alcachofra de um roxo
profundo. Vamos convir que os arranjos são lindos, são perfeitos.
E estendemos sobre a mesa as
esteiras de bananeira que vão dar o
choque, "épater", fazer a diferença,
a casa tão transada, tão cheia de
objetos nobres, chic, chic, um pouco igual a tudo que é muito rico. As
paredes recobertas de quadros de
museu, e as esteiras, artesanais,
vindas do norte, novinhas em folha, ainda sem abrir, amarradas
por junco.
E aí, então, pasmem, já contei esta história no Basílico (mas cuidado, leitores atentos, sem repetir
uma palavrinha que seja. Na minha
idade, já cheguei ao conforto do poder contar uma história duas vezes,
quanto mais de dez em dez anos...),
e não sei porque ela me impressiona. Uma barata aponta as antenas
de dentro das esteiras. Feia. É do
Pará, grande, com asas, brasileira.
É melhor não dar bandeira, ninguém entenderia como aquela barata apareceu ali, no mais dedetizado dos lugares. Ela parou, estupefata, vinda diretamente do chão
craquelento, do calor, e, de repente, toda aquela informação nova,
Paris, Versailles, aquele mármore
branco e preto no chão gelado.
Pôs-se a andar como se tivesse
medo de escorregar, sentindo
perigo, e foi saindo confusa, destramelada, procurando um buraco
escuro e quente.
Nós, as donas da barata, mudas,
bico fechado, imóveis. Podia ser
o fim da carreira de estilistas de
mesa. E ela foi indo, foi indo, até
encontrar a maciez do chenile, o
conforto da lã.
Amanhã, vamos ter gazpachos
com frutas brasileiras, se é que isto
existe, um salmão mergulhado em
sucos de moqueca, sopas de cambuquira, esparregados de bertalha,
lulas com tapioca inspiradas no
eñe, amuse-gueules de todas as espécies, desde canapés a pirulitos de
parmesão, circulando pela sala. Os
garçons, com dólmãs brancos, irrepreensíveis, uma das mãos para
trás, servindo champanhe francesa
a rodo. As mulheres rebrilhando,
furta-cores, os sapatos de salto inacreditável, os decotes generosos, a
bolsa de grife, um blush nas bochechas.
Mas nós, nós sabemos, com um
certo sobressalto, que a barata está
lá, rente ao vaso Gallé. A barata está lá, espreitando a sua hora, ainda
muda de espanto. Hospedada na
casa do banqueiro, oiweh!!!!
ninahorta@uol.com.br
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