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Crítica/"O Livro das Citações"
A partir de palavras de terceiros, Giannetti segue ideal moderno Livro de citações de economista e ensaísta reflete sobre a linguagem, o saber, a ética individual e o comportamento cívico
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Aconteceu em 1888. Oscar Wilde, o incomparável, publicava o diálogo "The Critic as Artist" (O Crítico como Artista). E, com deliciosa inteligência paradoxal,
Wilde afirmava que para dizermos aquilo em que verdadeiramente acreditamos é preciso
falar através de lábios alheios.
Eis o programa central da modernidade, extensível a qualquer expressão artística: a noção de "originalidade", sagrada
para os românticos, era transformada num palimpsesto criativo em que nada é meu, nada é
teu, tudo é nosso.
Lembrei essa história com o
livro delicioso de Eduardo
Giannetti. Livro de citações,
sim, mas cautela: existem dois
tipos de livros de citações. O
primeiro é mero conjunto de
frases mais ou menos aleatórias ("Eu só sei que nada sei"
etc.), sem qualquer "programa"
ou "intenção". O segundo tipo
cumpre o que Oscar Wilde determinava: apresentar um pensamento particular através das
palavras de terceiros. É o caso
de Giannetti.
Dividindo a obra em quatro
partes, Giannetti "reflete" sobre a linguagem, o saber, a ética
individual e o comportamento
cívico. E, depois de explanar
longamente sobre a inutilidade
dos prefácios (Bataille, Goethe,
Baudelaire ou Manuel Bandeira ajudam à festa), o autor
avança com uma única certeza:
a certeza de que todas as certezas contêm em si o germe da
sua própria contradição.
Nietzsche onipresente
Mas Giannetti tenta: leitor
de Wittgenstein (e de Nietzsche, onipresente no volume),
Giannetti ironiza com Cioran
("Uma idéia clara é uma idéia
sem futuro", pág. 21) para concluir sobre a importância da legibilidade, base do verdadeiro
filosofar. Orwell poderia ser incluído nessa turma.
E Giannetti? Em que turma
poderia ser incluído? Minha
proposta é arriscada. Mas lendo as citações escolhidas, vejo
em Giannetti um estóico, no
sentido moderno do termo. O
que é a felicidade? É não perguntar em que consiste a felicidade, porque existe na interrogação o princípio da infelicidade (Stuart Mill "dixit").
O que é a riqueza? A riqueza é
não desejar mais do que aquilo
que se tem, conselho central
dos clássicos, de Epicuro a Platão. O contrário não é apenas
uma causa de infelicidade; a
ambição desmedida da acumulação material é, como Baudelaire avisa, a raiz da vulgaridade. Além disso, e como diria Sêneca ao seu discípulo Lucílio,
nada é mais importante do que
o tempo. Não existe maior riqueza pessoal. Cícero, na página 175, concorda com Giannetti. Ou vice-versa.
Opinião pública
Porque somos nós a origem e
o fim dos nossos projetos de vida. Por isso aplaudo a inclusão
de Henry Thoreau: "A opinião
pública não passa de um anêmico tirano se comparada à
nossa própria opinião privada.
Aquilo que um homem pensa
de si mesmo -é isso que determina, ou antes indica, o seu
destino" (pág. 62). Basta essa
citação para estabelecer a diferença, nem sempre entendida,
entre auto-respeito e auto-estima: auto-estima pressupõe o
olhar dos outros sobre nós; auto-respeito pressupõe o nosso
olhar sobre nós próprios. Ao
contrário do que afirmam os livros de auto-ajuda, só o auto-respeito merece ser cultivado: a
opinião alheia é volátil e, muitas vezes, fonte de permanente
escravidão.
Surpresas? Várias. Fiquei
surpreso com a inclusão de dois
autores que jamais imaginaria
em exercícios aforísticos: Bolingbroke e Juan de Mariana,
dois nomes do protoconservadorismo europeu. E depois encontrei frases cuja autoria se
perdeu no ruído do tempo.
Nassim Taleb afirmou em 2007
que a morte é um bom passo na
carreira de um autor (pág. 75);
Gore Vidal disse o mesmo, mais
de 20 anos antes, quando Truman Capote morreu. Também
gostei de saber que Simone de
Beauvoir considerava o "pluralismo" uma qualidade própria
da direita. "A verdade é una; o
erro, múltiplo." (pág. 95) É a receita típica para o fanatismo.
Deixo para o fim o momento
mais hilário do livro: algumas
meditações sobre o excesso de
leitura. Será possível que ler em
demasia seja prejudicial para
qualquer intelecto humano?
Descartes aconselhava a que jamais se excedessem os 45 minutos de filosofia por dia. Giannetti cita, entre outros, Lichtenberg: "Creio que alguns de
nossos scholars realmente medíocres poderiam ter chegado a
ser homens mais grandiosos
caso não tivessem lido em demasia". (pág. 26)
Com o devido respeito a
Giannetti, sugiro para inclusão
futura um comentário do ditador português Oliveira Salazar
que, confrontado com os ardores filosóficos (e democráticos)
de um opositor, afirmava: "Esse
rapaz é demasiado culto para a
inteligência que possui". Que
pena Salazar não se ter dedicado simplesmente ao aforismo...
O LIVRO DAS CITAÇÕES - BREVIÁRIO DAS IDÉIAS REPLICANTES
Autor: Eduardo Giannetti
Tradução: vários
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 49 (464 págs.)
Avaliação: ótimo
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