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crítica
Jornalismo razoável se une a frágil literatura
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O que o sucesso de um
falsário primeiro demonstra é o fracasso
da idéia de arte, derrotada
pela cultura. Quando o valor
de uma obra depende do reconhecimento do nome do
autor, é sinal que a cultura (a
mera informação, o hábito,
as idéias feitas) se pôs diante
da arte e oculta sua percepção. Nesse caso, o logro existe quer a obra seja "autêntica" ou "falsa", quer o logrado
seja o crítico ou o visitante
comum do museu.
Mas o que é um "falso", em
arte? Durante séculos, colecionadores encomendaram a
cópia de obras que apreciavam. Se a cópia era tão boa
quanto o original, tudo bem.
O valor, a virtude, não estava
na originalidade mas no
"bem fazer" (como fez Boucher ao copiar magnificamente um magnífico Veronese: o resultado está no
Masp). De uma orquestra
que execute um Beethoven
tão bem quanto outra não se
diz que está falsificando ou
copiando esta. Há escassas
razões para mudar a argumentação quando se muda
de arte. Orson Welles tem razão em "F for Fake": "A arte
é, em si mesma, verdadeira".
E o que busca quem faz
uma cópia ou "pinta ao modo
de" alguém que já morreu,
como Van Meegeren, o "falsário" deste livro? Dinheiro?
Vingança contra "críticos insensíveis"? (Crítico sensível
é aquele que gosta do que faço.) Obsessão pela mentira?
Pode ser. Mas, também, como todo artista "verdadeiro", o desejo de ter a própria
obra apreciada pelo único
juiz que interessa: algum artista do passado que se admirava, cujas telas ou livros
gostaríamos de ter feito.
Ser reconhecido pelo presente, pelo futuro, está bem.
Melhor é ser admirado pelo
antecessor. O que mais recompensa Van Meegeren é
ver seu "falso" pendurado na
parede do museu ao lado dos
grandes do passado. Velhos
mestres não podem ter consciência do novo; mas o mundo todo os verá ao lado da nova obra, "falsa" ou "real" -e é
"como se". Tal como no "livro perfeito" de Bioy Casares, "A Invenção de Morel",
em que o personagem se coloca dentro do filme em que
aparece sua amada, depois
de lhe ter estudado os gestos
e as falas, dando a quem depois visse o filme a impressão de que os dois estiveram
juntos quando "na verdade"
ela nunca o conheceu porque
existiu antes dele...
A questão do "falso" e do
"verdadeiro" não é central
apenas na arte: é central nesta cultura pelo menos desde
Platão e seu mito da caverna.
Questão bem mais complicada do que faz supor esse livro, misto de jornalismo razoável e frágil literatura que
conta a história de um holandês que fazia Vermeers. O livro prende a atenção nos trechos em que narra o processo de falsificação, que levou
seis anos, e é exemplo da rala
literatura de massa quando
ficcionaliza passagens da vida do falsário.
Há um aspecto curioso
nesse livro, apropriado a seu
tema. A primeira edição em
inglês, em capa dura, mais
cara, veio com o título (em
tradução) "Eu Fui Vermeer:
Ascensão e Queda do Maior
Falsário do Século 20".
Quando o livro saiu na barata e massificada edição de
bolso, o título passou a ser
aquele que a edição brasileira preferiu. Parece que a
massa precisa de uma isca a
mais. É curioso porque, se a
venda de um "falso" de Van
Meegeren aos nazistas deu
origem à descoberta posterior de seus feitos, essa é
uma parte menor do livro,
centrado em coisas mais vitais que aconteceram antes:
como o "falsário" trabalhou,
como "enganou" críticos e
museus (mas, a arte não é
sempre verdadeira?), como
reagiram suas "vítimas". O
título original do livro (o título "verdadeiro"?) é mais
apropriado. É curioso. Talvez pertinente.
TEIXEIRA COELHO é curador-chefe do Masp.
EU FUI VERMEER: A LENDA
DO FALSÁRIO QUE ENGANOU
OS NAZISTAS
Autor: Frank Wynne
Tradução: Hildegard Feist
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (304 págs.)
Avaliação: regular
NA INTERNET
www.folha.com.br/081995
leia trecho do livro
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