|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"O Encontro"
Livro segue sinais de destruição em tentativa de revisão familiar
Obra vencedora do Booker Prize lança pistas de passado de que nem a narradora tem certeza
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O dramaturgo inglês Joe
Orton tem uma peça
cujo título traduz-se
como "O que o Mordomo Viu"
("What the Butler Saw"). "O
Encontro", romance com que a
irlandesa Anne Enright ganhou
o Man Booker Prize de 2007,
poderia ser descrito como "O
que Veronica Viu. Talvez".
O livro se inicia com a protagonista e narradora Veronica
disposta a contar um evento da
infância, do qual foi testemunha e que envolveu seu irmão
mais velho Liam. Mas ela não
está segura do que ocorreu. Segundo a personagem, o que talvez nem tenha acontecido pode
se chamar de "crime da carne".
Mas, como abordá-lo agora que
"a carne há muito se desfez" e
ela não sabe bem "qual mágoa
pode restar nos ossos"?
O leitor fica naturalmente
curioso sobre a natureza do crime e sobre de quem é a carne
criminosa e desfeita, mas fatos
demoram a se juntar num todo
mais ou menos coerente.
Quando Veronica inicia seu relato, Liam havia acabado de se
suicidar. Mas o leitor só compreende isso bem depois.
Liam é o irmão de quem Veronica era mais chegada. A família é extensíssima. A mãe teve 12 filhos (além de sete abortos). Veronica não a perdoa pela inconseqüência de tal fertilidade. Como não perdoa o marido pela arrogância nem as filhas pelo egoísmo infantil. Veronica é uma mulher raivosa.
Não significa que a raiva a
impeça de reconhecer a própria
implicação nas situações que a
frustram. O cargo importante
do marido levou o casal a um
acordo pelo qual ela abandonaria o emprego de jornalista especializada em decoração, para
cuidar das filhas. Veronica, porém, sabe que não sente falta de
escrever sobre toalheiros aquecidos e tons de areia e creme.
Não há culpados no relato. A
raiva e a frustração existem,
mas não há um registro superior para ajustar as contas, conferindo punições e redenções.
A ausência dessa instância implica ainda a indefinição que
percorre os fatos. Veronica
quer reconstruir a história da
família, desde os avós, mas vê
que as lembranças são falhas e
que o que tem são suposições.
Nenhum grão de areia
Em um capítulo pelo meio do
livro, ela recorda a ocasião em
que a avó Ada levou-a com
Liam e a irmã Kitty à praia. O
trajeto é longo e envolve uma
parada em "um lugar chamado
St. Ita", ao qual se chega por
uma estradinha rural.
No caminho, ao longe e em
frente, vê-se um homem que se
movimenta por meio de dois
bastões. Veronica pressente
que há algo de assustador nele,
como uma deformação no rosto, mas, para assegurar-se disso, teriam de passar pelo homem. Apesar do passo trôpego,
ele mantém-se sempre adiante.
Aos poucos o leitor percebe
que St. Ita é um hospício e que
Ada levara os netos até lá porque queria visitar um irmão.
Contudo, ao chegar, deixa as
crianças em uma quadra de onde se vê o mar. O capítulo se encerra sem que o leitor penetre
no misterioso St. Ita, distinga a
face do estranho homem na estrada ou veja qualquer praia. O
capítulo que se inicia anunciando um dia na praia não fornece nenhum grão de areia.
Assim se dá com a narrativa
de Enright. Seguimos maravilhados pelos sinais de destruição sem que vejamos o verdadeiro núcleo sinistro que os
produz. Ou, quando o vislumbramos por um instante, as incertezas são tantas que não sabemos se estamos diante do
motor infernal ou de outro de
seus rastros -o qual nos cabe
seguir por um caminho que é
tão belo quanto terrível.
O ENCONTRO
Autora: Anne Enright
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 35 (244 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Rodapé Literário: Picadinho no picadeiro Próximo Texto: Trecho Índice
|