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MARCELO COELHO
Cão sem dono, terreno baldio
É em torno da ameaça de proletarização da classe média que o filme está girando o tempo todo
ECONOMISTAS REPETEM há
anos que, para o Brasil começar a crescer, falta fazer direitinho a "lição de casa".
Na mesma ordem de raciocínio,
dizia-se das empresas estatais que
deveriam passar por um "saneamento" financeiro antes de serem
privatizadas. Desse modo, a "parte
podre" das companhias seria absorvida pelo Estado, para que o investidor estrangeiro adquirisse um produto de qualidade.
Essa fábula de "bom comportamento" talvez não esteja distante do
enredo de "Cão sem Dono", o último
filme de Beto Brant. Temas como
monetarismo e privatização passam
longe de "Cão sem Dono", que parece dever mais ao tom deprê de alguns filmes franceses do que à tradição alegórica do cinema nacional.
O que vemos na tela são as cenas
de sexo e de tédio de um rapaz feioso, acabrunhado e sem profissão
(Júlio Andrade) e de uma aspirante
a modelo internacional (Tainá Müller), um bocado caxias e bem mais
carinhosa com o namorado do que
ele estava a merecer.
Há de fato tipos assim, cães sem
dono, que sem fazer muita coisa terminam sendo cuidados pelos outros. Não apenas Marcela, mas também os pais e até o zelador do prédio
tomam conta de Ciro, que sem ser
antipático termina provocando
mais distanciamento do que solidariedade por parte do espectador.
Será inveja deste crítico? O sucesso do protagonista com a namorada
belíssima pode sem dúvida irritar
um pouco o público masculino -enquanto as mulheres da platéia talvez
se identifiquem, olhando para o
marmanjo sentado na poltrona ao
lado, com a capacidade de entrega e
tolerância de que está imbuída a
personagem de Tainá Müller.
O mais interessante de "Cão sem
Dono", contudo, é aquilo que não
pertence à intimidade do casal, e
que, a rigor, nem mesmo aparece na
tela. Ao contrário de "O Invasor", filme de Beto Brant onde não faltavam
cenas externas e retratos panorâmicos da vida urbana de São Paulo,
"Cão sem Dono" mostra no máximo
uma ou duas ruas da cidade onde foi
rodado, Porto Alegre.
A oposição entre bairros nobres e
periferia, que era o tema principal
de "O Invasor", quase que desaparece; ou melhor, é vista do avesso, neste novo filme de Brant. Em "Cão
sem Dono", o casalzinho de classe
média termina conhecendo uma família jovem no subúrbio porto-alegrense; o que marca esse encontro
não é a violência, e sim o carinho e a
espontaneidade.
Difícil ver no cinema brasileiro,
aliás, conversas tão espontâneas, tão
"domésticas", quanto as que acontecem nas raras vezes em que Ciro está com seus pais; sinal dos tempos, o
casulo familiar deixou de ser o foco
inicial da revolta adolescente para se
tornar o único ponto de referência
do personagem.
Não há, propriamente, nada contra o que se revoltar -exceto aquilo
que não está ao alcance de ninguém,
e que nem mesmo entra no campo
de visão do filme. Mas não acredito
que a "realidade social" tenha sido
eliminada de "Cão sem Dono". Em
vez de surgir disfarçada atrás de
máscaras e alegorias, está presente
-só que fora da cena, na forma de
alusão, de incógnita ou de ameaça.
O pai de Ciro é dono de um terreno impossível de vender. É que, em
frente, o governo depositou enormes canos de concreto para uma
obra que não será terminada nunca.
O resultado são dezenas de mendigos usando os canos como moradia.
Para muitos cineastas, seria tentador mostrar essa paisagem de Calcutá em Porto Alegre. Isso não acontece com Beto Brant: a informação
nos vem de uma conversa, apenas,
diante de um prato de lasanha...
Aquelas moradias miseráveis seriam como que o "buraco negro" do
enredo, algo que não pode ser visto
nem apresentado; e, a exemplo do
que se diz na teoria científica, exercem uma atração gravitacional invisível sobre "Cão sem Dono".
Pois é em torno da ameaça de proletarização de setores da classe média (estudantes de letras, filhos de
pequenos profissionais liberais, jovens pouco adaptados à competitividade contemporânea) que o filme,
creio, está girando o tempo todo.
Há algumas décadas, muito se
pensou e fez, no âmbito da esquerda,
em favor de um encontro entre a
classe média radical e um suposto
proletariado revolucionário. Em "O
Invasor", esse tema recebe uma versão sarcástica, como um pesadelo sinistro; "Cão sem Dono" oferece outra possibilidade: a de que, se o sonho acabou, o pesadelo também pode passar. Desde que, é claro, você
esteja dormindo ao lado de uma modelo sensacional.
coelhofsp@uol.com.br
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