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Para Roth, escrever é uma questão de invenção, não de sentimento
Principal escritor norte-americano vivo diz que não julga seus personagens e compara Machado a Beckett
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,
EM NOVA YORK
Um e-mail sobre a impossibilidade de conseguir uma entrevista, comparando-a à impossibilidade própria da literatura,
fez com que Philip Roth aceitasse ser entrevistado, ele que
raramente aparece em público.
Um senhor alto, magro, que
se mantém infenso a qualquer
proximidade, Roth tem como
resposta pronta: não. Não: a
América não é um país de pessoas planas e convictas. Mas, ao
mesmo tempo, não: na América, há muita gente atrasada.
Com memória e inteligência
monumentais, apesar da postura defensiva, Roth disse o
quanto admira Machado de Assis, que comparou a Beckett,
que a literatura não é feita de
sentimentos, falou sobre seu
último livro lançado em junho
no Brasil, "Fantasma Sai de Cena", e disse também não ter
"um único osso religioso" no
corpo.
Em março do ano que vem, a
Companhia das Letras lança no
Brasil o novo romance do escritor, "Shop Talk", ainda sem título em português.
FOLHA - Seus livros falam da hipocrisia da classe média, mas há um interesse pela sua grande solidão.
PHILIP ROTH - A hipocrisia não é
um dos meus tópicos e não estou muito preocupado com a
classe média. Não penso a partir de uma perspectiva de classe. A maioria dos personagens
se encontra em situações extremas; muitos são personagens
masculinos vulneráveis; são até
fortes, mas não o suficiente.
Coloco-os em face de forças intransponíveis e a hipocrisia não
é algo que me interesse.
FOLHA - Mas essa vulnerabilidade
não tem a ver com o fato de eles pertencerem à classe média?
ROTH - Eu não tenho consciência de classe quando trabalho.
Em "A Marca Humana"
(2002), o personagem é atacado pelos politicamente corretos, por utilizar a palavra
"spook", que é compreendida
como um termo pejorativo para negro, quando não foi isso o
que ele quis dizer. Ele fica isolado e, quando se envolve com
uma garota da classe trabalhadora (não se diz mais "classe
trabalhadora" porque também
seria pejorativo, é "pessoa trabalhadora"), a sua vida se desfaz, mas não tem a ver com classe. Não julgo os personagens;
eles podem ser vistos além da
condição social.
FOLHA - O sr. sente compaixão por
seus personagens?
ROTH - Sim, eu sinto. Embora
sinta mais carinho pelos vivos.
Os personagens estão só no papel. Nos últimos livros, como
"Fantasma Sai de Cena" (2008)
e "Homem Comum" (2007) há
homens envelhecendo. Eu me
preocupo com a condição das
pessoas, com um tipo de solidão que penetra a vida dos mais
velhos, que se sentem excluídos, perdidos. Não é tanto como eu me sinto, mas se consigo
representá-lo de forma persuasiva e se consigo encontrar uma
história que represente a condição.
FOLHA - Mas o sr. representa de
forma tão persuasiva que os leitores
têm compaixão pelos personagens.
ROTH - Isso é bom, mas você é
uma leitora e eu sou um escritor, e as emoções não são as
mesmas, porque escrever não é
uma questão de sentimentos, é
uma questão de invenção.
FOLHA - O sr. leu algum livro de
Machado de Assis?
ROTH - É claro, li um livro incrível, narrado postumamente.
Em inglês o título é muito estranho, "Epitáfio para um Pequeno Vencedor" [Roth se refere a "Memórias Póstumas de
Brás Cubas]. Eu não sei de onde
vem isso, mas é idiota, deve ser
um nome de puro marketing,
mas é um grande livro.
FOLHA - Os personagens de Machado de Assis passam por situações
ridículas, mas ele não faz com que o
leitor sinta compaixão. Machado de
Assis é cético; já nos seus livros não
há tanto ceticismo, é como se houvesse uma saída.
ROTH - Você tem razão. Ele é
um grande irônico, é um comediante trágico. Em seus livros,
nos momentos mais cômicos,
ele representa o sofrimento fazendo-nos rir. Como Beckett,
que é irônico com o sofrimento.
Ele provoca compaixão no leitor, mas seu corte é duro e preciso. É possível representar o
sofrimento de um ponto de vista distante, mas não faço isso.
FOLHA - É possível não ser ridículo?
ROTH - Nós não somos ridículos nem nos expressamos assim
a todo o momento. Geralmente
somos ridículos socialmente,
quando nos sentimos deslocados, mas há muitas pessoas que
não se sentem assim e os outros
não as consideram ridículas.
FOLHA - O sr. sente culpa por não
ser um sobrevivente de guerra?
ROTH - Eu só tinha seis anos
quando a guerra começou e era
um garoto americano. A culpa
não é uma característica dos judeus americanos da minha geração. Eu passei minha infância
durante a guerra e ela teve um
tremendo impacto; eu prestava
muita atenção nisso e o país
também, mas não sinto culpa.
Éramos treinados a nos sentirmos patriotas e a amar o país.
FOLHA - Alguns de seus personagens costumam citar provérbios como: "Se minha avó tivesse rodas ela
seria um trem" ou "Não seja modesto, você não é tão bom assim". Eles
contêm grandes verdades?
ROTH - Eles são interessantes,
mas incompletos. Nós vamos
além deles. Há outras fontes de
sabedoria, como os livros. Não
conheço muitos provérbios judaicos. A religião não tem muito significado para mim, nem
do ponto de vista ideológico. Eu
não possuo nem um osso religioso em meu corpo. Sou essencialmente hostil às religiões, a
todas elas. Hostil aos rituais religiosos. Eles são ridículos.
FOLHA - A maneira como morre o
personagem de "Homem Comum"
é horrível. Trata-se de uma indústria
da morte. O senhor acha que é possível morrer de forma mais digna?
ROTH - As pessoas morrem sozinhas, com cuidados médicos,
nos hospitais. Eu não diria que
os hospitais são uma indústria
da morte; o maior perigo é ser
mantido vivo por meios artificiais. Tenho um testamento em
vida em que determino que não
quero ser mantido vivo por máquinas. Eu não sei nada sobre
se preparar para a morte: estou
especialmente despreparado e,
como para todo o resto em minha vida, vou ter que lidar com
isso no momento em que acontecer. Não desenvolvi nenhum
protocolo: pode ser que eu a encare, pode ser que eu seja heróico, pode ser que eu grite...
FOLHA - Caetano Veloso diz que
nos EUA preto é preto e branco é
branco. Aqui, vemos que o certo é
certo e o errado é errado. O sr. concorda com isso?
ROTH - Esse país é uma mistura de multidões e há muita sutileza, há uma sociedade de pessoas autoquestionadoras, inteligentes e intelectualmente sofisticadas. É claro que a maioria
é burra, mas quando alguém de
fora fala da América, eles estão
falando sobre nosso mínimo
denominador comum, talvez o
mais óbvio, mas há muitas
Américas. As pessoas vão aos
museus em Nova York, eles
existem e estão sempre cheios.
FOLHA - Não quis dizer que as pessoas sejam burras...
ROTH - Mas há muitas pessoas
bem burras...
FOLHA - Em "Fantasma Sai de Cena", o personagem diz que Primo
Levi se suicidou porque escreveu sobre a guerra e não porque esteve na
guerra. Escrever sobre algo dói mais
do que vivê-lo?
ROTH - Eu conheci Primo Levi.
"Os Afogados e os Sobreviventes" (1986) é um livro extraordinário e muito dolorido. Primo sobreviveu à guerra, voltou
para a Itália e construiu uma vida! Ele sobreviveu a Auschwitz.
Escreveu seu primeiro livro,
que é incrível, "É Isto um Homem?" (1947), e depois não escreveu mais sobre a guerra. Escreveu "A Tabela Periódica"
(1975), um livro fantástico e depois mais alguns livros e nenhum tinha a ver com Auschwitz. Então o que acontece? Ele
se aposenta e começa a escrever "Os Afogados e os Sobreviventes", um livro contemplativo, uma meditação furiosa.
Acho que o campo tornou-se
novamente algo vivo, a contemplação se transformou em
pessimismo e o pessimismo em
depressão. É isso o que eu quis
dizer. Não acho que a experiência o matou, ele conquistou
Auschwitz por meio de sua escrita e do exemplo de sua vida.
FOLHA - O sr. acha melhor esquecer ou lembrar?
ROTH - Lembrar a ponto de se
deixar assombrar é ruim. Querer esquecer algo é completamente compreensível. Talvez a
experiência seja tão assustadora que seja impossível lembrá-la sem se deixar assombrar. Eu
não sei qual é a etiqueta nesses
casos. O que é certo e o que é errado, o que é melhor ou pior.
FOLHA - O "Fantasma Sai de Cena"
é uma referência a "Hamlet"?
ROTH - Não. É uma rubrica em
"Hamlet", em "Macbeth", em
"Julius Caesar". O meu personagem se torna fantasmagórico, tem uma certa dissolução e
desaparece da própria vida.
Resta um tipo de fantasma.
FOLHA - Seus personagens costumam afirmar alguma coisa e imediatamente depois costumam dizer
exatamente o oposto. Por quê?
ROTH - Acho que isso é o contrário da tal certeza de que você
falou. Trata-se de autoquestionamento. Não pergunte o que
aconteceu a você, pergunte como você fez acontecer. Mas às
vezes as coisas acontecem. Não
foi você. O mundo externo é
muito poderoso.
FANTASMA SAI DE CENA
Autor: Philip Roth
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42 (284 págs.)
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