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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Pais, filhos e gays
A busca de super-homens é uma quimera longa e trágica na história humana
SERÁ POSSÍVEL escolher as preferências sexuais de um filho?
Não, não falo de preferências
por ruivas, loiras ou morenas. A
questão, levantada pela cibernética
"Slate", vai mais fundo: será possível
mexer na base neurobiológica de
uma criatura e "reprogramá-la" para ela gostar do sexo oposto?
Talvez. Conta a "Slate" que longe
vão os tempos em que a homossexualidade era encarada como escolha pessoal ou produto do meio. A
homossexualidade é um fato natural
-como a cor dos olhos, a pigmentação da pele-, e estudos recentes
apóiam a tese ao mostrarem diferenças visíveis no cérebro de homos
e héteros.
Parece que os gays têm cérebros
muito semelhantes aos das mulheres hétero. E parece que as lésbicas
têm cérebros muito semelhantes
aos dos homens hétero.
Mas os estudos não ficam restritos
a esse retrato. Os cientistas dão um
passo além e sugerem que importantes influências hormonais, durante e pouco depois da gestação,
determinam a constituição neurobiológica do indivíduo. E, se os hormônios desempenham papel principal, abre-se a porta prometida: "reorientar" os hormônios, "reorientar"
a preferência sexual do bebê.
A possibilidade recebe aplausos. A
Igreja Católica, confrontada com tal
cenário, esquece a sua própria doutrina sobre os limites da manipulação médica e apóia decididamente a
busca de uma "terapia" capaz de
"curar" a "doença" homossexual.
Mais impressionante é a opinião
da maioria: questionada sobre a possibilidade de conhecer a orientação
sexual do filho por meio de um teste
pré-natal, a generalidade não hesitaria em recorrer ao aborto ou à "reprogramação" caso a sexualidade da
criança apontasse para o lado "errado". No fundo, quem não salvaria
um filho do preconceito social ou da
"doença" homossexual?
Fatalmente, a questão é desonesta. Aceitar as premissas do debate
lançado pela "Slate" -aceitar, no
fundo, que, por meio da ciência, é
possível reverter a orientação sexual
de um ser humano- é aceitar, implicitamente, que a homossexualidade
é uma doença. E, aceitando-o, permitir que a medicina a trate exatamente como trata qualquer doença.
A realidade não legitima a fantasia. A síndrome de Down ou a espinha bífida, por exemplo, são doenças no sentido mais básico do termo:
elas impedem que um ser humano
tenha uma vida plena. Podemos discutir se a medicina deve e pode "manipular" genética ou biologicamente
uma vida humana para erradicar esses males. E podemos discutir se esses males legitimam a interrupção
da gravidez.
Mas essas discussões são distintas
do problema inicial: reconhecer a
Down ou a espinha bífida como fatores objetivamente incapacitantes de
uma vida normal.
A homossexualidade não é uma
doença. Pode ser motivo de preconceito social, dificuldade relacional,
neurose pessoal -mas não é impeditiva de um funcionamento pleno
do indivíduo nem põe em risco a sua
sobrevivência futura.
Nada disso significa, porém, que
não exista uma base neurobiológica
capaz de explicar a orientação sexual. É possível e até provável. Exatamente como é possível e provável
que certas propensões da personalidade humana -para a depressão,
para a liderança, para a criatividade- estejam já inscritas na nossa
natureza.
Mas isso não autoriza a medicina a
procurar o paradigma do Super-Homem, dotado da dosagem certa de
humor, capacidade de chefia, talento para a pintura e para o sapateado.
A busca de super-homens é uma
quimera longa e trágica na história
humana.
Resta a questão final: e os pais?
Confrontados com a possibilidade
de "reprogramarem" a orientação
sexual de um filho ou de descartarem-no via "aborto terapêutico", terão os pais o direito de pedir à medicina esse instrumento seletivo e
subjetivo?
Aceitar essa possibilidade é aceitar que, no futuro, os pais poderão
determinar a vida futura dos filhos.
Escolher a orientação sexual; o temperamento; a vocação intelectual; a
excelência atlética ou estética.
Não duvido que a maioria, confrontada com tal hipótese, reservasse para a descendência o cruzamento ideal entre Brad Pitt, Albert Einstein e Pelé.
Mas um tal gesto seria uma tripla
violência: contra a medicina e a sua
função especificamente curativa;
contra o mistério e a diversidade da
vida humana; mas também contra
os próprios filhos, condenados a habitar vidas que não lhes pertenceriam, mas que foram desenhadas
pela vaidade, soberba e tirania de
seus progenitores.
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