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CRÍTICA
Imagens nos inspiram a uma maior investigação
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Fotos de pessoas trucidadas,
relatos de genocídio, cenas de
massacre na televisão -coisas
desse tipo, de tantas vezes repetidas, terminam deixando o público indiferente. A violência se banaliza. Pior: transforma-se em espetáculo.
Argumentos desse tipo não são
novos, e a ensaísta americana Susan Sontag já defendia a tese no livro "Sobre Fotografia" (77). A novidade de "Diante da Dor dos Outros", texto de 2003 que a Companhia das Letras publica, está no fato de que Sontag reexamina, e
contesta, essas afirmações.
"Qual a prova", pergunta, "de
que as fotos produzem um impacto decrescente, de que nossa
cultura de espectadores neutraliza a força moral das fotos de atrocidades?". Imagens famosas, como a da menina vietnamita fugindo das bombas de napalm (foto
tirada em 1972 por Huynh Cong
Ut), têm o efeito de se fixarem na
memória, como síntese e exemplo
dos horrores da guerra; mas isso
não significa necessariamente
que tenham sofrido um processo
de banalização.
Ela continua: "O rosto horrivelmente desfigurado de veteranos
da Primeira Guerra (...); o rosto
empapado e inchado com o tecido das cicatrizes de sobreviventes
das bombas atômicas americanas
lançadas em Hiroshima e Nagasaki; o rosto fendido a golpes de facão dos tútsis que sobreviveram
ao genocídio desencadeado pelos
hutus em Ruanda -será correto
dizer que as pessoas se habituam
a essas imagens?".
Há fortes indícios em contrário.
Sontag nota que, em geral, os governos são os principais interessados em não divulgar cenas chocantes. A então primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher restringiu a presença de fotógrafos
na Guerra das Malvinas; na Guerra do Golfo, a televisão deixou de
exibir o massacre de milhares de
recrutas iraquianos em retirada,
bombardeados no que foi chamado por um militar americano de
"tiro ao alvo nos patinhos".
Bom gosto?
Razões de bom gosto, talvez.
Mas Sontag (e aqui encontramos
o típico tom inconformado da autora, seja qual for a tese que esteja
defendendo no momento) observa que o bom gosto "é sempre um
critério repressivo quando invocado por instituições".
Excetuados alguns lances melodramáticos da argumentação, e
certa tendência para "mostrar
serviço" no quesito informação
enciclopédica (Ticiano, a Ilíada,
Henry James), o livro de Sontag é
convincente e foge do lugar-comum. Não é o acúmulo de fotos
que produz indiferença; há uma
série de outros fatores em jogo.
"A compaixão é uma emoção
instável", diz a autora. "Ela precisa ser traduzida em ação, do contrário definha." Comover-se, apenas, não é grande mérito moral.
Por outro lado, podemos facilmente querer virar a página do
jornal ou desligar a TV se considerarmos que a situação retratada
é insolúvel. Sem dúvida, uma mera foto, por mais terrível que seja,
não substitui uma análise contextualizada da situação que a produziu. "Imagens dolorosas e pungentes", diz, fornecem apenas a
centelha inicial para que cada um
de nós (se puder) vá mais adiante.
Diante da Dor dos Outros
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