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Mônica Bergamo
bergamo@folhasp.com.br
Marcos Ramos - 3.dez.2000/Agência O Globo
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Cláudia Faissol roda o mundo com o pai da bossa nova
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João por Cláudia
Cláudia Faissol acompanha João Gilberto há 12 anos pelos palcos e diz que o músico, com quem tem uma filha, não é "abilolado"; ela filma a vida dele para um documentário e afirma que o mundo ergue catedrais para ouvi-lo cantar
A telefonista do hotel Maksoud Plaza transfere a ligação
para o apartamento de João
Gilberto, 77. Cláudia Faissol,
36, atende. A colunista se identifica e pede para falar com o
cantor, que cinco dias antes se
apresentara em São Paulo. "Ele
está no banho", diz ela. A conversa continua por quase uma
hora. No fim, Cláudia autoriza
que ela seja publicada.
Ela conhece João Gilberto há
mais de 20 anos -seu pai, o
dentista Olympio Faissol, é
amigo do cantor. Há 12, viaja
com ele pelo mundo registrando sua rotina e os bastidores de
seus shows. Há quatro, eles tiveram uma filha, Luiza. Cláudia era casada. Passou por momentos difíceis. E não gosta de
falar sobre o assunto. "A vida
pessoal das pessoas não é ensinamento pra ninguém. A gente
vai na vida tomando atitudes da
maneira que pode, né? Foi tudo
muito duro." A seguir, os principais trechos do bate-papo de
Cláudia com a coluna:
FOLHA - O que você achou do show
em São Paulo?
CLÁUDIA FAISSOL - Foi lindo, foi
maravilhoso e todo mundo
amou. Ele estava bem-humorado. Eu acho que ele quis dar isso
para o Brasil, sabe? Há quanto
tempo ele não tocava aqui... E
ele adora o povo daqui, apesar
de ele às vezes ter essa mágoa
grande do Brasil porque aqui os
discos dele foram adulterados
[em 1988, a EMI lançou o álbum "O Mito", com todas as
músicas de João Gilberto que
tinha no seu arquivo. Três discos iniciais do cantor foram
modificados].
FOLHA - Sei.
CLÁUDIA - É o grande trauma da
vida dele. Ele poderia ter outro
comportamento se não fosse
essa história. Ele ficou com
horror de fazer as coisas aqui
no Brasil, entendeu?
"O João não pode
mais assinar uma coisa e
não cumprir porque ele tá
com a reputação muito
prejudicada. Depois todo
mundo fica pensando que
ele é abilolado, né?"
"São as letras que ele
pegou para interpretar
que são a seleção mais bonita de palavras que eu já
ouvi na minha vida inteira, que enriqueceram a
minha alma. Não foi à toa
que eu fiquei assim, enfim, tão impressionada
com a beleza que eu vi"
"Os discos dele
foram adulterados. Ele
poderia ter outro comportamento se não fosse essa história. Ele ficou com horror de fazer
as coisas aqui no Brasil,
entendeu?"
"Ele falava [no
segundo dia de show
em São Paulo]: "Eu
quero entrar. Não sou
atrasado, não! Eu tô ansioso, eu quero entrar,
não sou atrasado, não,
não sou atrasado, não"
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FOLHA - Mesmo depois desse tempo todo?
CLÁUDIA - Não houve nenhum
crime cultural na face dessa
Terra do tamanho desse. É como se pegassem os quadros do
Picasso e começassem a pintar
umas coisinhas cor-de-rosa,
banalizassem aquela arte. Foi
isso o que fizeram com os primeiros três discos dele. Uma
obra de arte real, verdadeira, de
sentimento raro e de aceitação
mundial, que está sendo celebrada há 50 anos e que os originais estão desfeitos.
FOLHA - O pessoal em SP reclamou
um pouco do atraso dele nos shows
[de mais de uma hora].
CLÁUDIA - É. Na realidade, coitado, ele chegou aqui em SP
[vindo do Rio] atrasado. A gente pegou tempo ruim. Ficamos
um tempão no avião, rodando
em cima de São Paulo até poder descer. Foi uma luta muito
grande para ele. Não foi um relaxamento dele com a coisa.
FOLHA - A informação é de que ele
estava jantando no hotel enquanto
a platéia o aguardava no Auditório
Ibirapuera.
CLÁUDIA - Não! Não tava jantando. Ele comeu quando chegou no hotel. Ele tinha que comer, né? Mas ele engoliu a comida. Engoliu, coitado. O avião
que nos trouxe não tinha comida. Ele chegou faminto aqui, sabe? Ele teve, poxa, um vôo péssimo, com pressurização. Sabe
quando o ouvido vai estourando, assim? Então, todo mundo
sentiu isso. Eu senti, a minha filhinha até chorou.
FOLHA - Mas no dia seguinte ele
também atrasou.
CLÁUDIA - Mas foi bem menor,
né? No segundo dia não deixaram ele entrar no palco [no horário certo]! Ele queria entrar.
Eles falaram: não, tem que falar
o Zuza [Homem de Mello, que
apresentava o cantor], tem que
ter a apresentação do Itaú, né,
umas crianças de uma instituição e não sei o quê... Ele falava:
"Eu quero entrar. Não sou atrasado, não!" (risos). É, ele falava:
"Eu tô ansioso, eu quero entrar, não sou atrasado, não, não
sou atrasado, não". Eu tinha dito a ele: "João, ontem reclamaram do atraso. Por favor, não
vamos atrasar hoje". E aí ele
não atrasou, não. Ele chegou
no momento exato.
FOLHA - Você é a empresária, cuida
das coisas dele?
CLÁUDIA - Não, não. Eu ajudo
no que eu posso porque a gente
tem uma relação maravilhosa.
Mas eu não tô cuidando de nada, não. Nem quero. É uma responsabilidade muito grande.
Eu tento ajudar para ele não
chegar atrasado, essas coisas.
Sempre que eu posso, ajudo para que ele não faça coisas que
ele próprio depois fique chateado porque fez, entende?
FOLHA - Ele não pode ter horror de
fazer as coisas no país porque muitas pessoas o adoram no Brasil.
CLÁUDIA - Ele gosta de dar show
aqui. Mas ele tem muita preocupação com o que pode haver
no som, no palco, com a falta de
consciência. Não é com o público, não. Ele ama o público. Como ele gosta dos brasileiros...
Ele passou a vida lutando pelos
brasileiros, fora do país. Ele
morou 15 anos na América para
que estejam sendo celebrados
os 50 anos dessa música, né?
Pô, o pessoal da América não
queria deixar ele voltar [para
shows neste mês no Brasil]. As
pessoas amam ele lá. Eu falei:
"Não tem como ele ficar aqui.
Ele tem coisas planejadas há
um ano no Brasil". Foi superdifícil porque, vou te falar: as propostas lá são muito boas. Mas
eu falei: "O João não pode mais
assinar uma coisa e depois não
cumprir. Nem que a pessoa ofereça o dobro [de dinheiro] para
ele". O que assinar tem que
cumprir porque ele tá com a reputação muito prejudicada.
Depois todo mundo fica pensando que ele é abilolado, né?
FOLHA - E ele não é, né?
CLÁUDIA - Não é, nem um pouco. Ele gosta da música, ele gosta de ter a possibilidade de fazer
a música. Sabe, poxa, esse negócio aqui, eu tive que explicar
[para os organizadores do show
em SP]: "Olha, ele quer o som
do Japão, ele quer a iluminação
do Japão, senão vai desafinar o
violão dele, gente. Isso tudo
tem um porquê. Vocês não pensem que eu estou pedindo a iluminação do Japão só porque
tem a luzinha mais bonitinha,
não". Nada que uma pessoa tão
inteligente quanto ele diga é à
toa, jogado no céu, no ar. Ele falou bem do [hotel] Maksoud,
por exemplo. Os sucos aqui são
de soja, pêssego com soja, morango com soja. Tudo feito de
fruta natural. Não é à toa que
ele fala daqui, não. Ele esteve
no Carlyle, em Nova York. Você
entra lá, vê aquelas flores e pensa que vai desmaiar de beleza,
entendeu? Mas não tem o serviço que tem aqui. O Maksoud é
um serviço pelo Brasil que o
Brasil próprio despreza.
FOLHA - E vocês passearam em São
Paulo?
CLÁUDIA - O João é uma pessoa
muito cuidadosa com o que ele
faz, ele não passeia muito, não.
Ele tá treinando para o próximo show [no Rio, hoje], tá mudando o repertório. Ele não faz
nenhum show igual. Cada show
é um show. Ele se esforça muito
para poder dar aquilo que você
viu lá. O João faz uma linguagem tão linda, mas tão linda,
que quando ele toca na Rússia,
em qualquer lugar, as pessoas
fazem uma catedral para assisti-lo. Foi isso o que falou o cara
que empresariou a Ella Fitzgerald: é uma honra trazer o João
aqui porque ele é a boa música.
FOLHA - Você vai com ele a esses
países todos?
CLÁUDIA - Vou, vou. Eu estou
fazendo um acompanhamento
do trabalho dele há mais de 12
anos.
FOLHA - É um documentário, né?
CLÁUDIA - Isso.
FOLHA - E ainda não acabou?
CLÁUDIA - Não, isso é um trabalho para a vida inteira! Enquanto eu puder, eu quero fazer o
pouquinho que eu faço. Não tenho patrocinador, eu faço como eu posso. Eu conheço muita
gente pelo mundo afora, eu estudei em várias cidades, então
sempre tenho um amigo que
pode me ajudar, no Japão, em
Nova York. Onde não tem, eu
fico desesperada. Somos eu,
Deus e a câmera.
FOLHA - Você o filma em casa?
CLÁUDIA - Eu comecei filmando
muito disso. No começo, era a
minha maior curiosidade: poxa, por que ele faz tanto mistério com as coisas? Mas depois
eu vi que isso daí não é nada, é
mais uma pessoa no mundo,
entendeu? São banalidades. A
contribuição desse meu trabalho para o Brasil não é mostrar
ele em casa acordando. É o tanto de música que eu filmei ele
cantar que ele nunca gravou.
Eu sempre falo: "Poxa, João,
não esquece dessa". Ah, mas eu
ainda não treinei. Eu falo: "Ah,
mas vai ficar pra parede, João?
Essa beleza vai ficar pra parede?" Ele criou uma linguagem
que pode ser feita em qualquer
música de qualquer nacionalidade. Tanto é que ele canta "Estate", do Bruno Martino, que
fala [Cláudia começa a cantar]:
"Estate, sei calda come i baci
che ho perduto". [Depois, traduzindo]: "É verão, quente como o beijo que eu perdi, que
brilhava de trás da montanha.
É verão, é quente como o meu
amor que se foi, que hoje eu
tento cancelar no meu coração.
Verão que brilhava atrás de
uma montanha. Hoje ele desce
quente na minha cabeça. Hoje
ele desce no solo com furor".
São as letras que ele pegou para
interpretar que são a seleção
mais bonita de palavras que eu
já ouvi na minha vida inteira,
que enriqueceram a minha alma. Não foi à toa que eu fiquei
assim, enfim, tão impressionada com a beleza que eu vi.
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