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MARCELO COELHO
Para uma crítica da teoria crítica
Moralismo e lamúria aproximam a esquerda do pensamento conservador
UM PEQUENO teste para começar.
Leia atentamente as considerações abaixo e depois escolha o
caso específico a que elas se aplicam.
"No hipercapitalismo contemporâneo, em que tudo se reduz à forma
da mercadoria, desaparecem os laços de solidariedade entre os indivíduos. O consumismo predomina em
tudo, e com isso a busca imediata do
prazer, maquinal e frenético, tem
como efeito a desconsideração pelo
Outro, reduzido à condição de mero
objeto. O futuro deixa de ter sentido
num mundo sem utopias, e os ideais
coletivos são desprezados."
O trecho comenta (escolha a alternativa correta):
A) Os comícios com sorteios de
carro no Primeiro de Maio da Força
Sindical.
B) A atitude dos plantadores de arroz com relação aos índios da Amazônia.
C) O mau desempenho da seleção
brasileira de futebol nos últimos jogos.
D) O sucesso dos reality shows.
E) O assassinato da menina Isabella Nardoni.
Se você assinalou qualquer uma
das alternativas, acertou. As considerações "críticas" sobre capitalismo, individualismo e consumismo,
feitas a partir de um ponto de vista
de esquerda, aplicam-se a qualquer
um dos fenômenos que enumerei.
Mas podemos continuar o teste
utilizando um vocabulário conservador. Examine o próximo trecho.
"A ausência de responsabilidade e
disciplina é característica do homem moderno. As falsas promessas
de felicidade, difundidas a partir do
século 18, nada mais criaram do que
um vazio espiritual, incapaz de enfrentar o conteúdo essencialmente
trágico da experiência humana. O
materialismo mais grosseiro toma o
lugar antes ocupado pelos valores do
Sagrado, como a Família, a Vida, a
Tradição, o Dever."
Desnecessário dizer que essas
considerações, igualmente "críticas", mas a partir de um ponto de
vista de direita, também se aplicam
aos comícios da Força Sindical, à cobiça do agronegócio, ao desleixo dos
craques canarinhos, ao "BBB" e ao
caso Nardoni.
Claro, dirá o leitor: tanto esquerdistas quanto ultraconservadores
sempre foram focos de resistência à
mentalidade capitalista liberal.
O problema, a meu ver, é que nunca os discursos foram tão parecidos.
A velha lamúria da extrema direita católica, que parecia mais ou menos condenada ao esquecimento,
ganha hoje em dia ares de novidade:
é que muita gente já se cansou do vocabulário de esquerda.
Mas tudo se resume, a meu ver, a
uma troca de vocabulário. No fundo,
a atitude da esquerda, quando se exprime num tipo de crítica como a
que reproduzi, tende a ser tão moralista quanto a dos teóricos conservadores.
Como foi que as coisas chegaram a
esse ponto? É possível arriscar uma
teoria a esse respeito.
Há coisa de 30 ou 50 anos, todas as
condenações de esquerda ao consumismo, à destruição da natureza, à
injustiça social, à desordem urbana,
ao mundo contemporâneo em geral,
tinham um horizonte muito claro:
só uma mudança profunda na sociedade poderá solucionar esse conjunto de mazelas e misérias.
Continua-se, com todos os motivos aliás, a desgostar do mundo contemporâneo. Mas, eliminada a perspectiva de revolucioná-lo, a crítica
pode facilmente passar a ser uma
simples lamúria.
Faltaria, então, recuperar a idéia
de Revolução? Nunca fui entusiasta
do termo e menos ainda das realidades que trazia consigo. Com revolução ou sem revolução, o pensamento de esquerda tinha entretanto outra característica.
É que a teoria não se contentava
em relacionar episódios isolados a
uma situação geral na sociedade (o
"capitalismo tardio", a "pós-modernidade" etc.). Tratava-se de procurar, debaixo de tudo o que essa situação tem de cristalizado, as correntes
que a tornam inviável.
O que pode salvar a esquerda da
lamúria é procurar, segundo os velhíssimos ensinamentos de Marx,
aquilo que há de diferente e de renovador, ou, vá lá a palavra, de "dialético", em cada manifestação dessa
"mesma coisa" que tanto se quer criticar.
Sem ver a contradição, o que há de
insustentável e de dialético na realidade, tudo (do caso Nardoni à crise
do petróleo) se torna apenas "exemplo" de um esquema geral que é objeto de nosso asco; o caminho para o
moralismo conservador se abrevia
com isso. Sejamos mais dialéticos,
companheiros.
coelhofsp@uol.com.br
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