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MARCELO COELHO
O tempo e a arte russa
É bom tirar um capote do armário. Não que o inverno tenha chegado com tanta força assim, mas quem quiser visitar a exposição dos 500 anos de arte russa
em cartaz na Oca, no parque Ibirapuera, vai ter de aguentar um
ar-condicionado terrível.
Vai ver que foi de propósito. Assim como os cartazes da exposição, cujos letreiros trazem os RR e
os NN escritos ao contrário, o frio
deve ser para dar idéia de que tudo é bem russo mesmo.
Há também anúncios no rádio.
Puseram um sujeito vociferando
com um sotaque que parece mais
alemão do que russo. O homem
convoca o ouvinte a ir à Oca, num
tom cada vez mais imperativo e
rápido, o que supostamente remete ao totalitarismo soviético.
Mas terminam aí os estereótipos da mostra. Nem mesmo aquele outro clichê romântico, o da alma russa, com melancolias e balalaicas, se confirma nessa exposição, que é pura vitalidade, alegria
e deslumbramento.
Verdade que há todo um andar
dedicado às imagens religiosas,
que por uns bons 200 ou 300 anos
refazem os mesmos martírios e
solenidades dos seus santos e patriarcas. A atmosfera dessas salas
é mais sombria. Mas é a própria
austeridade desses ícones, sempre
rústicos mesmo quando cobertos
de ouro e prata, o que lhes dá um
parentesco com os objetos da arte
popular cotidiana -rocas de fiar,
bonecas de madeira, brinquedos,
arcas, estampas humorísticas-
que vemos em uma ou duas salas
do andar de baixo.
Alguns passos adiante, e estamos em Chagall. "Passeio", de
1917, é um quadro grande, claro e
arejado. Retrata o próprio pintor
ao ar livre, num piquenique, tendo ao fundo uma cidade verde;
Chagall está de mãos dadas com
sua mulher, Bella. Ela está voando. Ou melhor, está sendo agitada
ao vento -"como um estandarte", diz o catálogo da exposição. A
tela só não é totalmente eufórica
porque se deixa vazar também
por uma intensa, quase abstrata,
austeridade.
E é esse espírito de agitação, de
comemoração e de rigor ao mesmo tempo o que dá o tom da
grande maioria das obras de vanguarda dessa época. Uma das coisas interessantes da exposição é
ver, além dos nomes mais conhecidos de Malevitch e Rodchenko,
a quantidade de outros artistas
-homens e mulheres- também
às voltas com cubismo, futurismo
e suprematismo: Olga Rozánova,
Liubov Popova, Nadiejda Udaltsova, Vladimir Liebedev. Para
mim, tudo foi uma descoberta.
Com a vantagem de que a mostra não é tão gigantesca nem
exaustiva assim. Mas desconfio
de que esteja fazendo muita propaganda do evento quando queria justamente falar do seu aspecto mais polêmico.
Pensei que, com o fim do regime
soviético, tivessem queimado todos os quadros e painéis dos tempos do realismo socialista. Aquelas pinturas ultrafotográficas dos
anos 30 e 40, que mostram Stálin
como "pai dos povos", iluminado
e sorridente... será que alguém
ainda tem estômago para ver esse
tipo de coisa?
Um andar inteiro da exposição
está reservado ao realismo socialista e aos cartazes de propaganda. Claro que, com o passar do
tempo, aqueles painéis que mostram esportistas e personalidades
exemplares do regime soviético
deixam de ter conotações políticas mais sinistras (eu não diria o
mesmo da arte nazista, contudo).
Há outro efeito dessa passagem
do tempo. Vejo um cartaz com o
rosto de Stálin ou um quadro de
desfile cívico em Leningrado e
aquilo me evoca menos o totalitarismo russo do que os anúncios de
sabonete Eucalol, as capas de "Seleções do Reader's Digest", um retrato de Getúlio Vargas.
A mesma linguagem ultra-realista, idealizada, oleográfica, glaceada está presente na arte oficial
soviética e na arte oficial brasileira ou norte-americana daquele
tempo. Há coisa de uns 30 anos,
era totalmente desinformado o
sujeito que gostasse de Norman
Rockwell, com suas ilustrações fotográficas do "american way of life". Hoje, Rockwell é objeto de retrospectivas consagradoras e artigos que o levam a sério. A sério
demais, na minha opinião.
Há uma lei de valorização cultural por trás disso: Rockwell e os
realistas socialistas entraram na
moda simplesmente pelo fato de
que estão fora de moda. Atributos
sentimentais, perversidades de
gosto, fastio e esgotamento da
vanguarda sobrepõem novas camadas de interesse àquilo que foi
execrado há tempos.
Mesmo entre os realistas da exposição, em todo o caso, há diferenças notáveis de espírito e de
qualidade. Ao lado de quadros
puramente propagandísticos,
pintores figurativos como Alexander Samokhválov ("Setor de
Tecelagem", "Operária do Metrô") ou Deineka ("Corrida")
apresentam uma linguagem sóbria, com direitos de cidadania
garantidos, por assim dizer, na
arte do século 20.
Mas é como se esses artistas,
querendo representar o "povo", se
afastassem da arte popular, da
arte folclórica, mais áspera e festiva; e esta, por sua vez, é que se
aproxima da vanguarda, tão...
impopular na sua época.
Talvez esse descompasso entre o
popular, o impopular e a vanguarda seja o verdadeiro tema da
exposição; e é um descompasso
que serve como resumo não só da
arte mas da política do século
passado também.
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