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NINA HORTA
Cozer e coser
Como é que um cozinheiro coloca o sol dentro da panela? Como é que um estilista mostra a comemoração?
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LINO VILLAVENTURA é um estilista, um costureiro, muito
perto do cozinheiro, do pintor, do escultor, do artista que tem
sempre olhos de crianças para a vida. Costureiro-cozinheiro-poeta.
Não dá para entender é nada naqueles minutos de passarela. Afinal,
o costureiro quer nos dar olhos como os seus, do mesmo modo que
nós, os cozinheiros, emprestamos
nossa língua.
Quer nos mostrar tudo que viu, as
páginas brilhantes dos livros, aquela
nuvem dependurada, torta, torta, e
mais os rios e os mares, e a beirada
das ondas e as palmeiras, e algas e
muitos, muitos vaga-lumes.
Mas, falando assim, ele parece um
visionário que só vê coisas bonitas
de longe, sem se agarrar ao real.
Muito pelo contrário. Tem olhos de
lince para as mãos de uma pequena
bordadeira, ou de um rapaz que dobra as folhas em origami.
Sua costura é tangível, comível,
não é feita só de vento e poeira de estrelas, mas da terra mansa do Ceará.
Queremos comer suas telhas de babado com o chá da tarde, sentar embaixo de seus panos para refrescar.
Quase podemos escutar no seu
laboratório (como o de Ferran
Adrià) as gotas de ouro caindo nas
águas do rio.
A natureza humana nunca sai de
sua passarela, tem sempre a fragilidade ou a força de um homem ou de
uma mulher. Mas, de repente, também há o silêncio. Talvez ele chegue
a um ponto na sua arte (que poderia
ser a cozinha, a escultura, a pintura)
em que há uma quebra, onde nada se
fala ou se compara.
Acabam as palavras, e vemos o que
o estilista quer mostrar: alegria, festa. Como é que um cozinheiro consegue colocar o sol dentro da panela? Como é que um estilista mostra a
comemoração? Às vezes, descrever
uma cena é o pior jeito de mostrá-la.
Então, silêncio. Deixa os palhaços
passarem.
No último dia do Fashion Show,
fomos invadidos pelos olhos, cercados, tomados pelas mulheres do Lino, só fica a emoção, um gosto de Fellini na boca, de circo do tempo de
criança. E, como sempre, uma zona
de incompreensão, de cegueira, como em toda boa arte que se preze.
Mulheres-clowns saídas de Picasso, Severini, mulheres levitantes,
quase seguradas por fios, saltimbancos, bonecas-marionetes, robôs iluminados, bumba-meu-boi sem boi.
Sabe quando a cobra perde a pele? A
flor da buganvília seca? O dente-de-leão é assoprado? Asas de borboleta
plissadas? A textura dos panos era
assim, tipo teia de aranha sem dono,
mas obsessivamente trabalhadas
em nervuras, aquelas nervuras de
palmeira, de palmeira, de palmeira.
O gosto era, primeiro, de vinho
frutado, muito vinho derramado,
vermelho, embebedando a sala. De
manga madura amarela, de orelha
de goiaba-menina, do acobreado do
caju maduro, sonhos, tão elaborados
e cozidos e cosidos, e amarrados e
domados, escravos dos corpos das
modelos, ondulantes, arrepiados de
rendas e tules e sedas e gazes.
Queria tanto saber falar sobre moda, mas não era uma coisa de moda.
Assim, na passarela (como a comida
é no prato), são emoções e tessituras
e cheiros, uma pintura que as palavras têm problema para traduzir, seda pura como musse de mangaba,
crepes de limão da China, ganaches
com chá verde do Japão.
Sempre digo que Lino Villaventura é um cozinheiro que brinca de
costureiro. Desta vez, ele vestiu a
festa, trabalhou a cor, a dança, a música, o milagre contínuo da transformação do simples em belo, jogou bola, comeu com as mãos, lambeu os
beiços, estourou bexigas, fincou parabólicas nas cabeças das meninas,
soltou foguete de são João na véspera do santo. Etéreo, fino, louco.
Hoje tem marmelada? Tem, sim
senhor! Hoje tem goiabada? Tem,
sim senhor... E o palhaço o que é? É
ladrão de muié!
Ficou um gosto e um desejo de sapato de batata-roxa.
ninahorta@uol.com.br
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