São Paulo, sábado, 28 de junho de 2008

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ANTONIO CICERO

A noção de humanidade


Vivemos num mundo cada vez menor, mais economicamente interdependente

"NÃO HÁ homem no mundo", afirma Joseph de Maistre, em 1797. "Vi em minha vida", continua, "franceses, italianos, russos. Sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa; mas quanto ao homem, declaro nunca tê-lo encontrado; se ele existe, ignoro". A boutade de Maistre, inimigo declarado da Revolução Francesa e do Iluminismo, atinge, entre outras coisas, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. É naturalmente irônica a menção a Montesquieu, cujo livro "Cartas Persas" havia sido uma das primeiras manifestações da Ilustração.
Na verdade, o epigrama de Maistre não deve ser levado a sério, pois, assim como ele diz que não há homens no mundo, mas apenas franceses, italianos, russos etc., alguém poderia sustentar que não há italianos, mas apenas piemonteses, lombardos, toscanos etc.; ao que um terceiro poderia replicar que não há toscanos, mas apenas florentinos, sienenses, pisanos etc.; e assim por diante, até chegar a um indivíduo. E o indivíduo? Esse será todas essas coisas e muitas outras, inclusive homem (no sentido de "ser humano"), animal, ser vivo, ser.
Maistre morreu muito antes da publicação, em 1899, dos cadernos de Montesquieu. Pois bem, estranhamente, num desses cadernos, o autor de "O Espírito das Leis" parece postumamente responder à sentença de Maistre, ao afirmar: "Sou necessariamente homem, e só sou francês por acaso".
Mas o que dá a Montesquieu o direito de dizer que é necessariamente homem? Não poderia sua humanidade ser fruto do acaso? Não poderia ele ter dito, por exemplo: "Sou necessariamente animal, e só sou homem por acaso"? Não. O único animal que Montesquieu poderia ser é o homem (no sentido de "ser humano"), pois, de todos os animais, só o homem é capaz de pensar e dizer tais coisas.
Aos modernos, a maneira de pensar de Montesquieu é normal. É normal, por exemplo, que um brasileiro pense que, por acaso, é brasileiro, mas que poderia ter sido chinês ou nigeriano, ou americano, ou espanhol... E raramente nos damos conta de que os seres humanos só há pouco tempo aprenderam a ver as coisas desse modo. É claro que nesse ponto, como em tantos outros, alguns gregos já eram modernos. Diógenes, o Cínico, por exemplo, se dizia "kosmou polités", de onde "cosmopolita", que quer dizer "cidadão do mundo", expressão adotada pelos filósofos estóicos. Mas eles eram relativamente poucos.
Lévi-Strauss ensina que "a noção de humanidade, englobando, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana, é de aparição muito tardia e de expansão limitada. Lá mesmo onde ela parece ter atingido seu mais alto desenvolvimento, não é de modo algum certo -a história recente o prova- que ela esteja a salvo de equívocos e regressões. Mas para vastas frações da espécie humana e durante dezenas de milhares de anos, essa noção parece estar totalmente ausente. A humanidade cessa às fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes até do vilarejo".
Para termos uma idéia de como Lévi-Strauss tem razão ao falar da "aparição tardia" desse modo moderno de pensar, basta lembrar que os 250 anos que nos separam de Montesquieu estão para os 50 mil anos do Homo sapiens como os últimos sete minutos de um dia de 24 horas.
Hoje é um truísmo dizer que vivemos num mundo cada vez menor, mais economicamente interdependente e mais tecnologicamente interconectado do que jamais antes. Ao mesmo tempo, nunca foi tão desenvolvida e disseminada a consciência do caráter acidental, para o ser humano, não só da sua nacionalidade, mas da sua língua, cultu- ra, religião, etnia. Em tal mundo, seria de se esperar que as fronteiras políticas se tornassem cada vez mais porosas.
Entretanto, não é necessariamente isso que se observa, nem mesmo nas regiões do mundo onde a modernidade é mais desenvolvida e disseminada. De novo, Lévi-Strauss tem razão, ao dizer que a concepção moderna de humanidade não está a salvo de equívocos e regressões. Esta última palavra, aliás, mostra que, no fundo, ele considera essa concepção superior às pré-modernas. E como não o faria, se ela constitui uma das condições de possibilidade da própria antropologia que ele representa? De todo modo, aqueles que pensam assim e prezam a liberdade de pensamento e ação que só se tornou possível no mundo moderno devem ficar alertas. Se alguém duvidar disso, que leia, por exemplo, a regressiva legislação sobre imigração recentemente aprovada pelo Parlamento Europeu.


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