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ANTONIO CICERO
A noção de humanidade
Vivemos num mundo cada vez menor, mais economicamente interdependente
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"NÃO HÁ homem no mundo", afirma Joseph de
Maistre, em 1797. "Vi em
minha vida", continua, "franceses,
italianos, russos. Sei até, graças a
Montesquieu, que se pode ser persa;
mas quanto ao homem, declaro
nunca tê-lo encontrado; se ele existe, ignoro". A boutade de Maistre,
inimigo declarado da Revolução
Francesa e do Iluminismo, atinge,
entre outras coisas, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789. É naturalmente irônica a
menção a Montesquieu, cujo livro
"Cartas Persas" havia sido uma das
primeiras manifestações da Ilustração.
Na verdade, o epigrama de Maistre não deve ser levado a sério, pois,
assim como ele diz que não há homens no mundo, mas apenas franceses, italianos, russos etc., alguém
poderia sustentar que não há italianos, mas apenas piemonteses, lombardos, toscanos etc.; ao que um terceiro poderia replicar que não há
toscanos, mas apenas florentinos,
sienenses, pisanos etc.; e assim por
diante, até chegar a um indivíduo. E
o indivíduo? Esse será todas essas
coisas e muitas outras, inclusive homem (no sentido de "ser humano"),
animal, ser vivo, ser.
Maistre morreu muito antes da
publicação, em 1899, dos cadernos
de Montesquieu. Pois bem, estranhamente, num desses cadernos, o
autor de "O Espírito das Leis" parece postumamente responder à sentença de Maistre, ao afirmar: "Sou
necessariamente homem, e só sou
francês por acaso".
Mas o que dá a Montesquieu o direito de dizer que é necessariamente
homem? Não poderia sua humanidade ser fruto do acaso? Não poderia ele ter dito, por exemplo: "Sou
necessariamente animal, e só sou
homem por acaso"? Não. O único
animal que Montesquieu poderia
ser é o homem (no sentido de "ser
humano"), pois, de todos os animais,
só o homem é capaz de pensar e dizer tais coisas.
Aos modernos, a maneira de pensar de Montesquieu é normal. É
normal, por exemplo, que um brasileiro pense que, por acaso, é brasileiro, mas que poderia ter sido chinês
ou nigeriano, ou americano, ou espanhol... E raramente nos damos
conta de que os seres humanos só há
pouco tempo aprenderam a ver as
coisas desse modo. É claro que nesse
ponto, como em tantos outros, alguns gregos já eram modernos. Diógenes, o Cínico, por exemplo, se dizia "kosmou polités", de onde "cosmopolita", que quer dizer "cidadão
do mundo", expressão adotada pelos filósofos estóicos. Mas eles eram
relativamente poucos.
Lévi-Strauss ensina que "a noção
de humanidade, englobando, sem
distinção de raça ou de civilização,
todas as formas da espécie humana,
é de aparição muito tardia e de expansão limitada. Lá mesmo onde ela
parece ter atingido seu mais alto desenvolvimento, não é de modo algum certo -a história recente o prova- que ela esteja a salvo de equívocos e regressões. Mas para vastas
frações da espécie humana e durante dezenas de milhares de anos, essa
noção parece estar totalmente ausente. A humanidade cessa às fronteiras da tribo, do grupo lingüístico,
às vezes até do vilarejo".
Para termos uma idéia de como
Lévi-Strauss tem razão ao falar da
"aparição tardia" desse modo moderno de pensar, basta lembrar que
os 250 anos que nos separam de
Montesquieu estão para os 50 mil
anos do Homo sapiens como os últimos sete minutos de um dia de 24
horas.
Hoje é um truísmo dizer que vivemos num mundo cada vez menor,
mais economicamente interdependente e mais tecnologicamente interconectado do que jamais antes.
Ao mesmo tempo, nunca foi tão desenvolvida e disseminada a consciência do caráter acidental, para
o ser humano, não só da sua nacionalidade, mas da sua língua, cultu-
ra, religião, etnia. Em tal mundo, seria de se esperar que as fronteiras
políticas se tornassem cada vez mais
porosas.
Entretanto, não é necessariamente isso que se observa, nem mesmo
nas regiões do mundo onde a modernidade é mais desenvolvida e disseminada. De novo, Lévi-Strauss
tem razão, ao dizer que a concepção
moderna de humanidade não está a
salvo de equívocos e regressões. Esta
última palavra, aliás, mostra que, no
fundo, ele considera essa concepção
superior às pré-modernas. E como
não o faria, se ela constitui uma das
condições de possibilidade da própria antropologia que ele representa? De todo modo, aqueles que pensam assim e prezam a liberdade de
pensamento e ação que só se tornou
possível no mundo moderno devem
ficar alertas. Se alguém duvidar disso, que leia, por exemplo, a regressiva legislação sobre imigração recentemente aprovada pelo Parlamento
Europeu.
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