São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

"O Aprendiz" ri do mundo do trabalho

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

"Você está despedido" (You're fired) virou o bordão de sucesso do bilionário-apresentador Donald Trump. É um mundo muito de pernas para o ar este em que a frase temida por 11 entre dez trabalhadores tenha se transformado em um dos pontos altos do "reality show" "O Aprendiz" (People+Arts).
"The Apprendice" -título original-, que superou as expectativas de audiência nos EUA e deve ter uma versão brasileira produzida pela Record, não é o primeiro nem o único programa de TV que promete trabalho. No fundo, além do rápido gosto da fama e dos prêmios para os vencedores, arrumar um trabalho, um bico, uma outra maneira de ganhar a vida é a esperança de muitos dos participantes dos "reality shows".
Mas, em "O Aprendiz", o prêmio é, em si mesmo, o emprego, mas um emprego de "sonho" e fantasia, já no topo da cadeia corporativa norte-americana. A presença de Trump, um daqueles homens de negócios emblemáticos que os EUA produz de quando em quando, a encarnação mais perfeita do espírito capitalista, uma espécie de símbolo ambulante de toda a promessa de riqueza e poder advindos do modo americano de viver e trabalhar, é o grande achado.
Trump, ao mesmo tempo personagem, apresentador e produtor, tanto cria o lastro de realidade sem o qual a fantasia do "reality" não engata, quanto funciona como um poderoso elemento paródico. Ele é um bilionário de filme, de HQ, de TV -de ficção, enfim. Seu império, ao contrário dos bilhões discretos e cinza-monitor de Bill Gates, reluz. Tudo acontece a partir de sua dourada Trump Tower, edifício no centro de Manhattan, ainda a vitrine do capitalismo. Ele tem cassinos, hotéis e resorts em cidades cheias de néon como Atlantic City e Las Vegas. Ostenta suas limusines, jatos e acordos de divórcio cheios de números. Sente-se como um peixe dentro d'água na TV.
E, em "O Aprendiz", esse delírio de riqueza opulenta, ostensiva e dourada é a cenoura que conduz os candidatos a se submeterem a uma encenação do mundo hipercompetitivo do trabalho. É tanto mais empolgante -ou revoltante- quanto mais reforça seu caráter de encenação, de gincana, de jogo de colegiais. Sim, porque, na verdade o que "O Aprendiz" quer dizer é que aquilo tudo -a dureza, a crueldade, o estresse, a humilhação- é fichinha perto do que, no fundo, o mundo corporativo exige de seus trabalhadores.
É mais ou menos como um "Banco Imobiliário" (cujo nome em inglês, "Monopoly", é bem mais eloqüente a respeito daquilo com o que se está brincando). O jogo, que basicamente consiste em fazer dinheiro circular com a compra e venda de imóveis, foi criado por um desempregado em 1934, durante a Depressão. Não é curioso que, num momento em que o mundo do trabalho está se esfacelando, ele seja objeto de chacota?

@ - biabramo.tv@uol.com.br


Texto Anterior: Erudito: Villa-Lobos é tema de concerto ao ar livre
Próximo Texto: Novelas da semana
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.