São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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O rock de todas as idades

O escritor inglês Nick Hornby pede a volta do som "que nos faça felizes por estarmos vivos"

NICK HORNBY
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

Faltam poucos dias para o Natal do ano passado, e a banda de rock'n'roll Marah, da Filadélfia, está na metade de uma apresentação caracteristicamente feroz, caótica e inspirada, quando a entrada do lado direito do palco é aberta intempestivamente e um jovem entra cambaleando, carregando a maior parte de uma bateria. Meus amigos e eu ocupamos os melhores lugares da casa, a um metro de distância dos vocalistas do Marah, Serge e Dave Bielanko, mas, com a chegada do baterista, temos que afastar nossa mesa para abrir espaço para ele.
Não é o baterista do Marah (a banda está temporariamente sem), mas é um baterista, é dono da maior parte de uma bateria, e seu surgimento faz com que a banda consiga criar um barulho ainda mais glorioso e urgente do que estava conseguindo até então. O show termina em tom triunfal, com Serge deitado no chão, entre os pés do público, arrancando um choro pungente de sua gaita.
A questão é apenas que, três ou quatro meses antes, Bruce Springsteen, que é fã da banda, convidou os irmãos Bielanko a dividir o palco do Giants Stadium com ele para fazer um bis e também que, dentro em breve, o Marah vai lançar "20.000 Streets under the Sky", que deve se tornar um dos álbuns mais amados do mundo. Esses caras não deveriam estar passando o chapéu ao final do show. Afinal, quantas pessoas já tiveram que passar o chapéu no mesmo ano em que tocaram no Giants Stadium?
Há quase exatamente 30 anos Jon Landau publicou seu influente, instigante e, subseqüentemente, muito criticado e parodiado artigo sobre Bruce Springsteen -o artigo que incluía o trecho ""eu vi o futuro do rock'n'roll, e seu nome é Bruce Springsteen". Ele começa em tom comovente: "São 4h da manhã e está chovendo. Faço 27 anos hoje me sentindo velho, ouvindo meus discos e lembrando que as coisas eram diferentes dez anos atrás". É apenas um palpite, mas imagino que vários dos que estão lendo este artigo consigam se lembrar de como era sentir-se velho aos 27 e de como isso não guarda qualquer semelhança com sentir-se velho aos 37 ou aos 47. E vocês provavelmente sentem tanta saudade de discos quanto de ter 27 anos.
É difícil não pensar na idade e em sua relação com o rock. Acabo de completar 47 anos, e a cada ano que passa fica mais difícil não me perguntar se eu não deveria estar ouvindo algo que ainda é visto como mais apropriado para minha fase da vida. Você já ouviu os argumentos 1 milhão de vezes: a maior parte do rock é feita por jovens, para jovens e é sobre ser jovem, e, se você não é jovem e ainda o ouve, deveria se envergonhar. Finalmente consegui bolar minha resposta a tudo isso: concordo com a maior parte da descrição, apesar de ela ser grosseira. Entretanto, a conclusão já não faz mais sentido para mim.
A juventude é uma qualidade que não difere muito da saúde: é encontrada em abundância maior entre os jovens, e todos nós precisamos ter acesso a ela. Mas falo da energia, dos anseios cheios de desejo, da sensação de felicidade inexplicável, do senso esporádico de ser invencível, da esperança que arde como cloro.
Quando eu era mais jovem, o rock expressava esses sentimentos; agora que sou mais velho, os estimula. Mas, de um modo ou de outro, o rock era e continua a ser necessário porque, afinal, quem não precisa de uma sensação inexplicável de felicidade e um sentimento de invencibilidade, mesmo às vezes?

Adulta demais
Embora seja verdade que sou um velho nostálgico e que estou, sim, reclamando do estado em que se encontra a música contemporânea. Ela se tornou, de certo modo, adulta demais, se levando a sério demais. É claro que queremos ouvir canções sobre o Iraque, sobre a prostituição infantil, sobre a dependência de heroína. E, se as bandas acham necessário usar furadeiras elétricas em lugar de guitarras para dar vazão à sua ira, que o façam. Mas será que há alguma chance de ouvirmos como bis "Little Latin Lupe Lu", dos Righteous Brothers -ou, melhor ainda, algum equivalente contemporâneo?
Talvez o rock tenha chegado a uma bifurcação. Ou você pode correr atrás da vertente Britney, ou então optar pelo caminho mais nobre do cult-rock, que conduz a grandes críticas e ao esquecimento comercial. Compro esse tipo de material artístico o tempo todo, e boa parte dele é ótimo. Mas parte do que ele tem a dizer é que seus criadores não querem se misturar ao mainstream ou deixaram de pensar que é possível fazê-lo; conseqüentemente, o status de cult passou a ser previamente ordenado, em lugar de acidental.
Agora, quem quer fazer uma arte que seja engajada, autêntica e inteligente, mas que se proponha a incluir, mais do que a excluir? Fazê-lo faria você correr o risco de parecer não apenas sincero e não cool -ou seja, o oposto ao que é visto como pós-moderno-, como, também, arrogante e extremamente ambicioso.
Na verdade, não me importa se a música soa nova ou velha -só quero que ela tenha anseios e exuberância, que seja desinibida, que reconheça o poder redentor do barulho, que admita que a inteligência emocional às vezes se expressa melhor por uma grande troca de acordes do que por um cenho franzido.
Há pouco tempo o crítico de música pop do "Guardian" escreveu uma resenha sobre uma banda britânica que o lembrou da "guitarra e da bateria de máquina martelante do trio dos anos 1980 Big Black e do som sombrio da primeira fase do Throbbing Gristle". Não tenho dúvida alguma de que a banda sobre a qual ele escrevia ainda vai se mostrar uma das forças culturais mais significativas da década, nem, tampouco, que ela vai criar música que nos obrigará a encarar de frente o mal e o horror que existem dentro de todos nós.
Entretanto, há uma parte de mim que insiste em pensar que o rock -e, de fato, a arte como um todo- tem um papel ocasional a exercer na arte cada vez mais difícil de nos fazer felizes por estarmos vivos. Não sei se o Throbbing Gristle e seus descendentes algum dia conseguirão essa façanha, mas os integrantes do Marah a conseguem. Espero que eles não estejam novamente passando o chapéu ao final deste ano, mas, se estiverem, por favor não economizem nas moedas para colocar em seu chapéu.


Nick Hornby é autor de, entre outros livros, "Alta Fidelidade" e "Songbook"

Tradução Clara Allain


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