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NELSON ASCHER
Um ótimo poema repulsivo
Um texto como "Este seja o poema", de Philip Larkin, obriga-nos a dissociar o belo e o verdadeiro
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É NUM tom paradoxalmente
triunfalista ("Não tive filhos,
não transmiti a nenhuma
criatura o legado da nossa miséria")
que, em 1881, Machado de Assis arrematava "Memórias Póstumas de
Brás Cubas".
Noventa anos depois, em 1971, o
poeta inglês Philip Larkin (1922-1985) encerrava simbolicamente a
carreira com um breve poema cuja
última estrofe afirma e aconselha
(em tradução literal) o seguinte: "Os
homens passam (ou legam) a miséria uns aos outros. (...) Não tenhas filho algum".
O texto, um dos mais citados de
sua língua, é, assim, um epitáfio.
Diante de tamanha coincidência
(aliás, a tradução britânica do romance machadiano, sugestivamente intitulada "Epitaph of a Small
Winner", saíra em 1968, numa edição da Penguin), seria tentador imaginar que o poeta de lá (bibliotecário
profissional) tomara conhecimento
do prosador daqui e se inspirara em
seu livro. Tal vínculo de causa e efeito, porém, nada tem de obrigatório.
Operando com materiais similares,
mentes e temperamentos semelhantes chegam não raro a resultados parecidos.
Há imagens notáveis que, de tão
usadas, perdem o impacto original e
até deixam de expor claramente o
que dizem, a que vieram. É o que
ocorre com o sutil oxímoro formulado pelo brasileiro e pelo inglês. Cada
qual, falando de um "legado de miséria", cria uma imagem à cuja família
pertencem, por exemplo, "sua ausência preencheu uma grande lacuna" (atribuída a Stanislaw Ponte
Preta), "a cárie (...) que enche inteiramente o cheio de vazio" (de um
poeta que desconheço) e, no limite,
o "nada que é tudo" pessoano.
Nada impede, portanto, que Larkin e Machado de Assis (ou melhor,
Brás Cubas), numa destilação que, a
nossos ouvidos, soa, a um tempo, bíblica, darwiniana e psicanalítica,
sintetizassem independentemente
a essência do niilismo.
Agora, consta que o inglês mesmo
era pessoalmente uma figura no mínimo desagradável, e ninguém precisa concordar com sua mensagem
explícita. A maioria das pessoas que
conheço teve lá seus problemas com
pai e mãe, mas sabe que tanto o presente voluntário da vida como todo
o restante superam de longe as perdas e danos eventuais, e quem quer
que os tenha perdido sempre lhes
sentiu pungentemente a falta.
Que os pais cometem erros e nos
causam dificuldades desnecessárias,
tampouco é segredo. Eles, afinal, são
humanos, e é deles que herdamos,
sobretudo, nossa humanidade.
Aqueles que atribuem o grosso de
suas limitações ou insucessos a eles
não passam de fracos, incapazes de
reconhecer e assumir as próprias
responsabilidades. Salvo em casos
extremos (o de gente enviada a
Auschwitz ou ao Gulag, respectivamente por Hitler ou Stálin), cabe a
todo indivíduo responder, desde
muito cedo, pelo que é ou faz.
O de Larkin é, sem dúvida, um
poema bem-feito e, antes de mais
nada, contundente (assim como as
palavras derradeiras, note-se bem,
de Brás Cubas, um personagem que
jamais deve ser confundido com seu
criador), não devido à qualidade ou
agudeza de seu "insight", de sua percepção, mas a despeito da manifesta
falsidade e injustiça desta. Infelizmente, o fato é que ética e estética
não costumam andar de braços dados: bons sentimentos podem gerar
versos medíocres, enquanto idéias
repulsivas às vezes rendem ótimos
poemas.
Pensando bem, no entanto, o "infelizmente" acima está errado. Ótimos poemas com mensagens detestáveis são necessários para que nunca deixemos de ter em mente que, ao
contrário do que parece dizer a urna
grega de Keats, o belo e o verdadeiro
não são a mesma coisa. Um texto como "Este seja o poema" obriga-nos a
dissociar ambos, bem como o que
sentimos a seu respeito. Para quê?
Para aprendermos a não ceder ao
canto das sereias a ponto de acreditar em sua letra (ou vice-versa), pois,
embora possa ter sido escrita por
anjos ou pela serpente, ela, em nenhum dos casos, torna nossos ouvidos automaticamente refratários à
sedução da melodia.
Philip Larkin
"Este seja o poema"
Teu pai e mãe fodem contigo.
Que não o queiram, tanto faz.
Legam-te cada podre antigo,
além de uns novos, especiais.
Mas de cartola e fraque outrora
os sacaneou do mesmo modo,
gente ora austero-piegas, ora
se engalfinhando cega de ódio.
Passa-se a dor adiante: fossas
num mar que só fica mais fundo.
Dá o fora, pois, tão logo possas
sem pôr nenhum filho no mundo.
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