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LIVROS
Crítica/"Ao Mesmo Tempo"
Ensaios mostram Sontag atrevida
Textos produzidos pela americana ao fim da vida traduzem antiga luxúria de temas insólitos, mas agora motivados pela doença
SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Organizada e prefaciada
pelo filho, David Rieff,
a atual coleção de ensaios e discursos de Susan Sontag (1933-2004) é bem representativa do alto poder analítico e reflexivo da intelectual e
ativista norte-americana.
Escritos ao final da vida, os
textos continuam a traduzir,
agora pelo modo da doença (como veremos adiante), a antiga
luxúria de temas insólitos e
atualíssimos, aproximados de
maneira atrevida. A linguagem
ensaística convence e se impõe
por formulações audaciosas.
Sontag não ficou na janela a ver
a banda do novo milênio passar; saiu à frente, malabarista
dos mil objetos que atira ao ar.
Distante da cátedra universitária e presente na atualidade
de jornais e revistas culturais, a
carreira de Sontag tem mais a
ver com as de Edmund Wilson
(1895-1972) e de Lionel Trilling
(1905-1975), para citar só dois,
que com a da multidão de scholars acadêmicos, seus contemporâneos. Os ensaios dela não
se empertigam nas notas de pé
de página e não se dão como
imbatíveis por se esconderem
atrás de vastíssima bibliografia.
Os scholars costumam chover
no molhado, e ela, na horta.
Com delicadeza filial, o prefaciador observa que, se tivesse
de escolher uma única palavra
para evocá-la, seria "avidez".
Observa: "Ela queria experimentar tudo, provar tudo, ir a
toda parte, fazer tudo". E arremata: "Talvez fosse a gama dos
seus interesses aquilo que era
difícil apreender e impossível
de acompanhar". Enquanto
historiadores da arte e críticos
da literatura trabalham a parcimônia zoológica, ela trabalhava
o acúmulo industrial.
Vista do túmulo, para onde
foi levada antes do tempo por
doença maligna, sua vasta e diversificada obra tem a ver com
as esculturas do francês César.
Comprimidos pela memória do
leitor e admirador, seus livros
ganham a consistência de massa multicolorida e geométrica.
Espelham uma concepção de
"novo realismo" (para ficar
com a etiqueta dos críticos de
arte), prevalecente na segunda
metade do século 20.
E é da perspectiva do túmulo
que melhor se lê "Ao Mesmo
Tempo". De preferência acompanhado do romance póstumo
de Joseph Heller, "Retrato do
Artista Quando Velho", publicado pela Cosac Naify e tolamente negligenciado pelos brasileiros. A imaginação do velho
romancista é fértil. Formula e
acumula planos infindáveis.
Falta-lhe força para levar a cabo cada projeto maravilhoso. O
romance de Heller é um acúmulo de capítulos semelhantes
aos contos de Borges. Para que
escrever um único romance, se
você pode sintetizar muitos em
capítulos admiráveis?
Morte iminente
O que a doença tem a ver com
a expressão ensaística, quando
a ela se acopla a possibilidade
da morte iminente? Surge sem
dúvida uma desestruturação da
antiga lógica argumentativa. A
escrita cadenciada, convincente e rigorosa passa a ser pespontada pelos raios luminosos
da erudição acumulada por décadas de experiência e leitura.
Deles retira a força resignada.
A antiga avidez luxuriosa de
Sontag perdeu os retorcidos do
discurso lógico e barroquista,
transmitidos pela frase engenhosa, para encontrar uma formulação sintética e, sem dúvida, de maior contundência junto ao leitor-intérprete.
Não sabia, e me tranqüilizou
saber pelas palavras do filho
que, antes de morrer, Sontag
planejava escrever alguns ensaios, "em especial um sobre o
pensamento aforístico, tema
pelo qual se interessava fazia
algum tempo". Ali também se
anuncia a futura publicação de
"cadernos de notas". Retrato da
ensaísta quando doente.
A avidez encontrou o caminho da sabedoria na expressão
aforística, cujos melhores
exemplos são o ensaio "Fotografia: Uma Pequena Suma" e o
discurso "A Consciência das
Palavras". Menos pela lógica
argumentativa e mais pelo pensamento aforístico é que o leitor melhor adentra na coleção
póstuma. Não havia mais tempo hábil para o desenvolvimento circunstanciado e lento da
argumentação. Leia-se o ensaio
"1926...". O raciocínio tinha de
ser dado sem fintas, de chofre,
de preferência numa forma fechada, uma forma simples, para
me valer da categoria estudada
por André Jolles ("Formas
Simples", ed. Cultrix, 1976).
A extraordinária experiência
e a invejável erudição da autora
nunca deixam a peteca cair no
lugar-comum, ou na tirada
bem-humorada, que se tornou
chave-mestra no mercado cultural das celebridades, dominado pelos verbos com final em
-ar: falar, agradar e afagar. Como antídoto, leia-se "Literatura é Liberdade". A expressão
aforística -a frase de "Ao Mesmo Tempo" é tão percuciente
quanto a faca só lâmina de João
Cabral de Melo Neto.
SILVIANO SANTIAGO é crítico literário e escritor.
AO MESMO TEMPO
Autora: Susan Sontag
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (248 págs.)
Avaliação: ótimo
TRECHO
1. Fotografia é, antes de
tudo, um modo de ver. Não é a
visão em si mesma.
2. É a maneira
inelutavelmente "moderna"
de ver -predisposta em favor
de projetos de descoberta e
inovação.
3. Essa maneira de ver, que
agora tem uma longa história,
molda aquilo que procuramos
perceber e estamos
habituados a distinguir nas
fotografias.
4. A maneira moderna de
ver é ver em fragmentos.
Tem-se a sensação de que a
realidade é essencialmente
ilimitada e o conhecimento
não tem fim. Segue-se que
todas as fronteiras, todas as
idéias unificadoras têm de ser
enganosas, demagógicas; na
melhor hipótese, temporárias;
a longo prazo, quase sempre
falsas. Ver a realidade à luz de
certas idéias unificadoras tem
a vantagem inegável de dar
forma e feição à nossa
experiência. Mas também
-assim nos instrui a maneira
moderna de ver- nega a
infinita variedade e
complexidade do real. Desse
modo reprime a nossa
energia, a rigor o nosso direito,
de refazer o que queremos
refazer -a nossa sociedade,
nós mesmos. O que é
liberador, assim nos dizem, é
perceber cada vez mais.
[...]
8. Uma foto é um
fragmento -um relance.
Acumulamos relances,
fragmentos. Todos nós
estocamos mentalmente
centenas de imagens
fotográficas, que podem ser
lembradas de modo
instantâneo. Todas as fotos
aspiram à condição de ser
memoráveis -ou seja,
inesquecíveis.
Extraído de "Ao Mesmo Tempo",
de Susan Sontag
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