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Crítica - Drama

"Hoje" exuma o passado e incomoda

Tata Amaral revê ditadura a partir de trauma individual que se traduz em dor ao espectador

CÁSSIO STARLING CARLOS CRÍTICO DA FOLHA

Com um título tão simples, o quarto longa da diretora Tata Amaral reafirma sua capacidade de extrair o máximo do mínimo.

"Hoje" começa como um dia qualquer na vida de Vera, mulher madura e comum. De excepcional, esse dia só tem a mudança para um apartamento antigo, amplo, que a protagonista comprou na região central de São Paulo.

Enquanto ela orienta os homens que carregam a mudança, pequenos fragmentos são introduzidos, alterando a expectativa da personagem e a nossa.

Um olhar de desejo de um dos carregadores, uma torneira vazando, a abordagem inoportuna de uma vizinha, síndica do prédio com a habitual postura de mandona.

Todos são microeventos que extraem Vera, provisoriamente, de dentro de sua autossatisfação. São recursos que a diretora maneja com precisão, inserindo o espectador no espaço da intimidade: um apartamento próprio, porém ainda não habitado.

O despojamento desse lugar desocupado, nu, sem móveis ou decoração, reafirma o caráter de Vera, mulher e não heroína, como Dalva, Selma, Simone, Preta, Lena, Barbarah e Mayah, protagonistas dos longas anteriores de Tata Amaral.

À medida que o espaço se individualiza com a entrada em cena dos móveis, colocados de improviso em cantos, encostados em paredes, uma camada mais interna de Vera retorna refletida num ângulo furtivo de um espelho.

Luiz, antigo companheiro dos tempos de guerrilha contra a ditadura, ressurge, física e simbolicamente, como um morto sem sepultura.

Ao reaparecer, Luiz traz consigo o passado, na forma de vivências afetivas e de experiências políticas.

Ao se deparar com a face oculta de Vera, a dimensão coletiva ganha corpo, projetando no presente as pendências, as forças recalcadas do ontem que constituem o país, que não se limitam às recordações de uma geração.

Daí em diante, o contraste entre épocas e ideais traduz-se num diálogo rude que opõe Vera e Luiz. O embate ainda eleva-se à enésima potência graças à capacidade de Denise Fraga de transitar da leveza ao peso sem excesso de interpretação. Ao lado dela, a sobriedade do uruguaio César Troncoso completa-se com o sotaque hispânico que agrega distância e estranhamento ao personagem.

Contudo, esta situação central não impõe a "Hoje" a característica das ficções que exumam o período da ditadura militar na forma de acerto de contas.

A astúcia maior do roteiro, assinado pelo trio Jean-Claude Bernardet, Rubens Rewald e Felipe Sholl, consiste em não priorizar a reconstituição do passado como fazem os filmes históricos, cuja limitação consiste em crer que basta representá-lo para torná-lo incômodo. "Hoje", ao contrário, demonstra que apenas exumar o ontem pode ser um modo mais eficaz de enterrá-lo e de esquecê-lo.

Ao seu modo, Tata Amaral devolve o trauma, expõe a ferida, ao reapresentá-lo como perda para a personagem que o viveu e como dor para espectadores que só sabem dele no conforto neutro dos livros de história, das biografias, das reportagens e dos documentários.


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