Folha de S.Paulo

Crítica - Drama

Premiado em Cannes, turco desenha país arcaico

CÁSSIO STARLING CARLOS CRÍTICO DA FOLHA

Um filme que se anuncia com as palavras "era uma vez" no título faz supor que veremos uma grande saga, como nos tempos em que Sergio Leone resgatou o prazer da narrativa no auge da época em que os cineastas da modernidade dos anos 1960 a puseram em crise.

Em seu sexto longa, o diretor turco Nuri Bilge Ceylan, protótipo de artista neomoderno assíduo de festivais, explora a comum expectativa por histórias para demonstrar que, de fato, tudo depende das artimanhas do narrador.

Aquilo que "Era uma Vez em Anatólia" conta é mínimo: um homem foi assassinado, um grupo de policiais busca com o criminoso o local onde enterrou o corpo, o cadáver é levado de volta para ser identificado e examinado.

Tudo se passa ao longo de uma noite e do dia seguinte. No escuro, os faróis dos veículos projetam sombras sobre a paisagem e os rostos, pondo em relevo as faces e os abismos dos personagens num espetáculo fotograficamente fascinante.

Depois que amanhece, a mistura de bruma e poeira com o tom monocromático da paisagem dá um rumo indeciso aos fatos, impede que se fixem numa "verdade".

Esta procura pelo nada já foi feita e refeita no cinema de Antonioni, autor fantasma onipresente na filmografia de Ceylan. A angústia dessa influência fazia que a forte impressão deixada por "Climas" e "Três Macacos" logo fosse substituída pela desconfiança em relação ao pastiche.

A diferença de "Era uma Vez em Anatólia" (Grande Prêmio do Júri em Cannes- 2011) é que Ceylan não se satisfaz em produzir um espetáculo de abstração. Além de personagens compostos de intensidades e vazios, o enfoque dá a ver uma sociedade, um lugar no qual vagam homens em crise, um problema que dá sentido àquilo que parecia inócuo formalismo.

Com esse foco, "Era uma Vez em Anatólia" exibe uma Turquia em que o arcaico se sobrepõe à vontade de moderno, onde na rigidez machista a mulher só cabe como anjo ou morta. Um país e uma cultura, como os nossos, inalcançáveis como destino turístico.