Crítica - Literatura/Romance
Livros de Modiano melhoram quando viram autobiografia
Lançadas desde o ano passado, 5 obras do vencedor do Nobel chegam ao país
Conforme os anos iam passando, crescia o desespero do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986): o Nobel sempre lhe escapava das mãos. Em 1977, entretanto, ele ainda mantinha o espírito esportivo, e fez uma piadinha quando soube que o prêmio havia sido concedido a um poeta relativamente obscuro, o espanhol Vicente Aleixandre.
"É que os membros da Academia Sueca estão muito velhinhos", explicou Borges; "pensaram que estavam dando o prêmio para mim, mas trocaram os nomes sem querer."
A frase pode ser adaptada ao caso do Nobel deste ano, o francês Patrick Modiano. Da atual leva de publicações, ao menos dois romances de Modiano ("Ronda da Noite" e "Dora Bruder") dão a impressão de que os velhinhos suecos se confundiram. Queriam dar o prêmio, na verdade, a Georges Simenon (1903-1989).
Penso em seu romance "A Neve Estava Suja", de 1948 (reeditado agora pela Companhia das Letras) que aborda, com muito mais penetração psicológica e senso da forma, os temas de "Dora Bruder" e "Ronda da Noite".
Como o livro de Simenon, "Ronda da Noite" (1969) acompanha as aventuras de um tipinho sem caráter durante os anos da ocupação nazista na França. Tratava-se, naturalmente, de uma época propícia para a ação de delatores, de operadores do mercado negro, de gângsteres capazes de assumir o papel de policiais e ajudantes da Gestapo.
Modiano cria uma atmosfera onírica, como num baile de máscaras, para tratar de uma faceta especialmente repulsiva, e tristemente real, da Paris ocupada. De fato, num palacete da rua Lauriston, reuniam-se naquela época tipos suspeitíssimos, para orgias e negociatas ""enquanto as torturas da Gestapo tinham livre curso no porão.
VOLTAS E VOLTAS
Talvez por influência do "nouveau roman", alta vanguarda na década de 1960, Modiano envolve os acontecimentos de "Ronda da Noite" numa litania encantatória de nomes próprios, lembrando a locução hipnótica de Alain Resnais no filme "O Ano Passado em Marienbad" (1961), ou a câmera lenta narrativa de Marguerite Duras em textos como "Moderato Cantabile" (1958).
Lionel de Zieff, Pols de Helder, Mickey de Voisins, Paulo Hayakawa: essas figuras exóticas dão voltas e voltas em torno do protagonista, que irá finalmente aderir à gangue.
Nesse romance, o grupo se reúne numa mansão do square Cimarosa (os livros de Modiano mostram fascínio obsessivo por endereços parisienses); posteriormente, a famosa "gangue da rue Lauriston" será identificada pelo seu nome real na obra do autor.
Com o detalhe, nada insignificante, que o pai de Modiano, um judeu, foi salvo de morrer num campo de concentração graças a suas ligações, nunca muito esclarecidas, com essa quadrilha.
Os livros de Modiano se tornam melhores quando se aproximam da autobiografia, tentando remexer a ficha policial de seu pai e uma infância e adolescência meio ao Deus-dará.
É isso o que faz de "Remissão da Pena" (1988) o melhor romance de Modiano, dentre os lançados agora no Brasil. O pesadelo artificial de "Ronda da Noite" se transfigura aqui numa vaguidão de infância, em que carinho, medo e mistério se fundem com algo da poesia presente, digamos, no "Grand Meaulnes" de Alain-Fournier (1886-1914).
"Remissão da Pena" faz parte de uma trilogia da qual "Flores da Ruína" (1991) é um elemento ainda mais desconcertante. Aqui, Modiano faz uso do mesmo recurso empregado em "Dora Bruder" (1997) e em "Uma Rua de Roma" (1978). O narrador se dedica a longas investigações --bem ao gênero policial, no livro de 1978--sobre algum segredo que remonta (como sempre) à época da Ocupação.
O problema, a meu ver nítido em "Dora Bruder", é que toda a pesquisa parece valer menos por si mesma do que como substituto para a falta de imaginação do autor. A especulação, o jogo de hipóteses sobre o passado põem em cena, na verdade, o esforço de um romancista que simplesmente não é muito apto a criar boas histórias.
Uma feliz consequência dessa incapacidade é que os livros são curtos, e nada difíceis de ler. Salvam-se do esquecimento (é o caso de "Remissão da Pena") quando transparência e mistério, memória e irrealidade, conseguem reunir-se num equilíbrio delicado. Os demais, como se costuma dizer, são apenas para os fãs.