Mauricio Stycer
Muito mais que um beijo
'Babilônia' está sob ataque por colocar no centro da trama casal homossexual formado por duas idosas
No sétimo minuto do primeiro capítulo de "Babilônia", Estela (Nathalia Timberg) disse a Teresa (Fernanda Montenegro): "Você já passou da idade de trabalhar tanto, meu amor". Noventa segundos depois, encerrando uma conversa trivial sobre a filha de uma delas, Estela beijou carinhosamente a mão de Teresa, que retribuiu com um longo beijo na boca da mulher.
Exibida há duas semanas, a cena causou, como seria de se esperar, enorme alvoroço. Horrorizados, espectadores se declararam ofendidos, enquanto telepastores denunciaram a "podridão moral" da Globo e pediram boicote à Natura, patrocinadora da novela.
Com notável senso de oportunidade, e boa dose de hipocrisia, o SBT anunciou que no mesmo horário está exibindo "Carrossel", uma "novela pra família". Em 2011, a emissora colocou no ar o primeiro beijo entre duas mulheres em uma novela brasileira.
A Record, que acaba de lançar "Os Dez Mandamentos", não confrontou a Globo formalmente, mas dois de seus principais apresentadores, Marcelo Rezende e Geraldo Luís, também estão explorando o mote de que a novela bíblica é "para a família".
Como foi fartamente anunciado antes da estreia de "Babilônia", Estela e Teresa formam um casal há décadas. Elas criam como filho um dos netos da primeira, Rafael (Chay Suede). Por volta do capítulo 35, as duas vão formalizar a união, em uma grande festa.
Está claro que a rejeição, tanto a espontânea quanto a orquestrada, não é ao beijo que Estela e Teresa deram no primeiro capítulo, mas à sugestão dos autores de "Babilônia" de que o conceito de família deve ser entendido de forma mais ampla do que a tradicional.
No segundo capítulo, ainda passado em 2005, Teresa é chamada à escola de Rafael e ouve da diretora o pedido para que o garoto não mencione com os colegas ter "duas mães", mas, sim, uma mãe e uma tia.
"Eu não tenho nada contra, mas alguns pais dos alunos ficaram incomodados", diz a diretora. "Legalmente, a senhora tem toda razão", responde a personagem de Fernanda Montenegro. "Mas há certas leis que precisam se adaptar à realidade."
A observação parece ser uma referência a um projeto de lei, em tramitação no Senado, que revê o instituto da união estável e amplia o seu conceito reconhecendo a relação homoafetiva como entidade familiar.
"Babilônia", desta forma, dá sinais de estar engajada em uma campanha importante para a militância LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Trata-se de um passo adiante em um terreno onde as novelas da Globo sempre patinaram.
Como se sabe, a emissora proibiu, por muitos anos, a exibição de beijos entre personagens homossexuais. Autorizada oficialmente em janeiro de 2014, a quebra do tabu em cena de "Amor à Vida", protagonizada por Felix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso), abriu espaço para a discussão avançar.
Desperta curiosidade ver como a Globo lidará com a pressão para atenuar o debate proposto em "Babilônia". Pesa contra a novela, neste início, um resultado no Ibope muito abaixo da expectativa. Grupos de discussão estão sendo feitos para ouvir a opinião dos espectadores. A bandeira de Teresa e Estela, desconfio, corre riscos. Espero estar enganado.