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Crítica / Teatro Lume realiza belo espetáculo sobre a condição de ser artista LUIZ FERNANDO RAMOSCRÍTICO DA FOLHA Teatro em transe. "Os Bem-Intencionados", criação do grupo Lume em parceria com Grace Passô, apresenta uma cena inclassificável. Da tensão proposta entre o melodrama banal e o rito sacrifical resulta um belo espetáculo, acerto de contas dos envolvidos com sua condição de artistas. A raiz do projeto é a celebração de quase trinta anos de trabalho de um grupo que, abrigado pela Unicamp como laboratório de pesquisa, tornou-se uma referência nacional de formação de atores. Os espetáculos do Lume não atraem multidões, mas rodaram o mundo e trouxeram-lhe a fama, o que faz de seus cursos objeto de desejo de legiões de jovens. É essa fonte original -uma trupe consagrada em busca de novos desafios e renovação- que a dramaturga e encenadora Grace Passô assumiu quando aceitou conduzi-los nessa transição, ela própria na muda, depois de ter sido, há pouco anos, afamada como uma revelação. A primeira dificuldade talvez tenha sido transformar um tema estreito -a dinâmica interna de um coletivo- em assunto dramático capaz de se fazer matéria espetacular relevante. Dona de um estilo próprio, Passô vem construindo dramaturgias que escapam das narrativas bem acabadas e operam com o malogro e o desvio, em séries que se repetem obsessivamente. Diante da qualidade dos quatro atores e três atrizes do Lume, cujo domínio corporal e vocal costuma explorar regiões antidramáticas quase abstratas, e aceitando sua sugestão de brincarem com personagens psicológicos e realistas, a autora construiu estrutura ao mesmo tempo simples e complexa, que muito exige do desempenho dos atuantes. O ambiente de um bar com música ao vivo e a caracterização explicitamente carregada, próxima da bufonaria, dos tipos humanos encarnados se apresentam, de início, como coisa ligeira. O público, situado no centro da ação, vai, ao poucos, subliminarmente, conhecendo as entranhas daquelas caricaturas vivas e percebendo sua dimensão sombria. De fato, essas personas retratam os integrantes do Lume expondo-se despudoradamente em suas secretas fantasias. À medida que suas ações vão se acumulando em reiterados ciclos, ocorre o seu desinvestimento como intérpretes. Sem aura, assumem a fragilidade da arte que praticam. Há sempre o risco de tudo ser percebido como piada interna, pouco permeável a olhos estranhos. Mas ninguém precisa saber nada sobre o Lume para aceitar a beleza dessa cena desinvestida de pompa, em que os agentes transitam de certezas conquistadas a dúvidas inaugurais, e se permitem trocar a pele e forjar nova alma. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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