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Imaginação

prosa, poesia e tradução

O ciclope

ALEJANDRO ZAMBRA

TRADUÇÃO PAULO WERNECK

PRIMEIRO É PRECISO viver, dizia Claudia, e era difícil não concordar: antes de escrever era preciso viver as histórias, as aventuras. A mim não interessava, na época, contar histórias. A ela sim, quer dizer, não, ainda não; queria viver as histórias que, anos ou décadas depois, num incerto e sossegado futuro, contaria.

Claudia era cortazariana a não mais poder, embora seu primeiro contato com Cortázar tenha sido, na verdade, um desengano: ao chegar ao capítulo 7 de "O Jogo da Amarelinha", reconheceu apavorada o texto que seu namorado costumava recitar para ela com se fosse dele, o que a fez terminar o namoro e iniciar um romance com Cortázar que talvez ainda dure.

Minha amiga não se chamava, ela se chama Claudia: protejo, por via das dúvidas, sua identidade e a do namorado, que era então ajudante de cátedra e agora certamente dá aulas sobre Cortázar ou sobre intertextualidade em alguma universidade norte-americana. Nos idos de 1993 ou 1994, Claudia já era, sem dúvida, a protagonista de um romance longo, bonito e complexo, digno de Cortázar, ou de Kerouac, ou de qualquer um que se atrevesse a acompanhar sua vida rápida. Já a vida dos demais, a nossa vida, cabia com folga em uma página (com espaço duplo).

Aos 18 Claudia já tinha ido e voltado várias vezes: de uma cidade a outra, de um país a outro, de um continente a outro, e também sobretudo da dor à alegria e da alegria novamente à dor. Preenchia seus cadernos com o que eu supunha serem contos, ou rascunhos de contos, ou talvez um diário.

Mas, na única vez que aceitou ler para mim, descobri, com assombro, que Claudia escrevia poemas. Ela não os chamava de poemas, mas de anotações. A única diferença real entre essas anotações e os textos que naquela época eu escrevia era o nível da impostura: transcrevíamos as mesmas frases, descrevíamos as mesmas cenas, mas ela as esquecia, ou pelo menos dizia que esquecia, enquanto eu as passava a limpo e passava horas testando títulos e estruturas.

Você deveria escrever contos ou um romance, eu disse a Claudia naquela tarde de vento gelado e cerveja fria. Você viveu muita coisa, acrescentei, debilmente.

Não, respondeu, taxativa: você viveu mais, viveu muito mais do que eu, e em seguida começou a contar a minha vida como se estivesse lendo, na minha mão, o passado e o presente, e talvez o futuro também. Exagerava, como todo narrador e todo poeta: qualquer episódio da infância se tornava essencial, cada fato significava uma perda ou um progresso irreparáveis.

Eu me reconheci em parte no protagonista e nos decisivos personagens secundários (ela própria era, nessa história, uma personagem secundária que aos poucos ganhava relevância). Eu logo quis corresponder a esse romance improvisando a vida de Claudia: falei de viagens, do difícil retorno ao Chile, da separação de seus pais, e teria continuado se Claudia não tivesse de súbito dito cala a boca e ido ao banheiro e demorado dez ou vinte longos minutos até voltar.

Voltou de mansinho, mal conseguindo esconder um medo ou uma vergonha que não eram bem dela. Desculpa, me disse, não sei se gostaria que alguém escrevesse a minha vida. Gostaria de contá-la eu mesma, ou talvez de não contá-la.

Nos jogamos no gramado, trocando pedidos de desculpas como se estivéssemos competindo num concurso de boas maneiras. Mas na verdade falávamos, numa língua particular, que nenhum dos dois poderia nem queria ceder.

Foi então que me contou o capítulo 7 de "O Jogo da Amarelinha". Eu conhecia o ajudante de cátedra e sabia que tinha sido namorado de Claudia, o que me fez achar a história ainda mais cômica, pois me imaginava transformado no ciclope de que Cortázar falava ("e então brincamos de ciclope, nos olhamos cada vez de mais perto e os olhos crescem, se aproximam, se superpõem...").

Segurei o riso até que Claudia começou uma gargalhada e me disse é mentira, e os dois ríamos, pois sabíamos que não, que era verdade. Não gosto tanto de Cortázar, lancei de repente, a troco de nada. Por quê? Não sei, não gosto tanto assim, repeti, e voltamos a rir, desta vez sem motivo, já liberados do fantasma da seriedade.

Seria fácil, agora, rebater ou confirmar esses lugares-comuns: se viveu muito, escreva romances, se viveu pouco, escreva poemas. Mas não era exatamente essa a nossa discussão, que também não era uma discussão, pelo menos não uma em que um perde e o outro ganha.

Queríamos, talvez, empatar, continuar falando até que o guarda soltasse os cachorros e tivéssemos que fugir, bêbados. Mas ainda não estávamos bêbados, e o porteiro não estava nem aí se estávamos indo embora ou se íamos continuar conversando a noite inteira.

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