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APROPRIAÇÃO DO ESCRITOR INGLÊS PELOS INTELECTUAIS DE CLASSE MÉDIA
AJUDOU A POPULARIZAR SUAS OBRAS, MAS ESVAZIOU O SENTIDO DE EXPRESSÕES COMO "GRANDE IRMÃO", "DUPLIPENSAR" E "POLÍCIA DO PENSAMENTO"
A INVENÇÃO DE GEORGE ORWELL
por Louis Menand
Espécie de "Cândido" da Guerra Fria, "A Revolução dos Bichos", a sátira de George Orwell, foi
concluída em 1944, no auge da aliança firmada
entre o Ocidente e a União Soviética para combater o fascismo. Era uma advertência contra negociar
com Stálin e, nas circunstâncias, um livro profético. Orwell teve dificuldade em encontrar um editor, embora,
na ocasião do lançamento de "A Revolução dos Bichos", em agosto de 1945, mês das bombas de Hiroshima e Nagasaki, a Guerra Fria já se anunciasse no horizonte. Sucesso instantâneo na Inglaterra e nos Estados
Unidos, a obra foi rapidamente traduzida em várias línguas e distribuída em alguns países pelo próprio governo americano, além de livrar seu autor da vida sacrificada de antes, tornando-o famoso e rico.
Publicado quatro anos depois, "1984" obteve êxito
ainda maior. Quando o escreveu, Orwell tinha uma tuberculose pulmonar avançada e acabou morrendo, vítima da doença, em janeiro de 1950, aos 46 anos.
As manipulações do texto de "A Revolução dos Bichos" não demoraram a acontecer. No fascinante estudo "The Cultural Cold War" [A Guerra Fria Cultural,
ed. New Press], Frances Stonor Saunders relata que, logo após a morte de Orwell, a CIA (Howard Hunt era o
agente encarregado do caso) comprou secretamente da
viúva do autor os direitos para filmar o livro e mandou
produzir na Inglaterra uma versão em desenho animado, por ela distribuída no mundo inteiro. Nessa versão,
omite-se a cena final do romance, na qual já não se podem distinguir os porcos (isto é, os bolcheviques na alegoria de Orwell) dos exploradores de animais que os
precederam, os humanos (ou seja, os capitalistas). Cria-se um novo fim para a história, no qual os animais atacam e tomam a casa da fazenda ocupada pelos porcos,
libertando-se outra vez. Assim, depois de morto, Orwell
foi submetido às fraudes e aos estratagemas da propaganda ideológica, pelas mãos dos combatentes americanos da Guerra Fria que viriam a exaltá-lo como o
maior inimigo dessa mesma propaganda.
Howard Hunt ao menos restringiu o enredo à história
da União Soviética, como fez Orwell na trama original.
Cada detalhe do texto orwelliano corresponde a algum
incidente da história soviética. No entanto, embora rejeitasse o comunismo, Orwell tampouco defendia o capitalismo. Como essa parte do pensamento do escritor
foi cuidadosamente elidida, "A Revolução dos Bichos"
virou uma advertência contra a mudança política em si
mesma. E ainda hoje tal interpretação do livro persiste.
Mas quase tudo no entendimento popular de Orwell é
uma distorção de suas reais convicções e do tipo de escritor que ele era.
Escritores não são inteiramente responsáveis por seus
admiradores. Em vida, George Orwell era visto até mesmo pelos amigos como um sujeito do contra. Quanto
mais íntimo alguém ficava dele, mais frio e mais crítico
o autor se tornava. Como escritor, era mais duro com
seus aliados. Intelectual de classe média, Orwell desprezava tanto os intelectuais quanto a classe média. Os ataques desse socialista aos socialistas eram tão maldosos
quanto os de qualquer membro do partido "tory" [conservador britânico]. Pregava a solidariedade, mas cultivava hábitos de eremita ou de pária social, e seus livros
de ficção mais aclamados, "A Revolução dos Bichos" e
"1984", bem como o ensaio "Politics and the English
Language" [A Política e a Língua Inglesa], são ataques a
pessoas que diziam ter as mesmas idéias políticas que
ele. De fato não procurava fazer amigos. Após sua morte, entretanto, ganhou um súbito exército de fãs -todos intelectuais de classe média sempre prontos a insinuar que o escritor tão crítico de tudo os teria aprovado.
Nunca houve um exército tão heterogêneo do ponto
de vista ideológico quanto esse exército orwelliano. Autor de "George Orwell - The Politics of Literary Reputation" [A Política da Reputação Literária, ed. Transaction Pub], publicado em 1989, John Rodden registrou o
fato à exaustão. Ao longo dos anos, tal exército incluiu
ex-comunistas, socialistas, anarquistas de esquerda, libertários de direita, liberais, conservadores: cada grupo
com um uniforme diferente, mas com o mesmo button
na lapela -"Orwell tinha razão".
A única coisa que os admiradores póstumos de Orwell têm em comum, além do button, é o anticomunismo. Não obstante todos encontraram fundamentação
para seu conjunto particular de valores morais e políticos nos textos de Orwell, universalmente considerados
"honestos", "decentes" e "claros". Em que sentido então textos dos quais se fizeram tantas interpretações incompatíveis podem ser chamados de "claros"? E a respeito de que exatamente Orwell tinha razão?
Embora fosse indiferente a sua própria pessoa, seus
textos são essencialmente pessoais. Todos os seus livros
de não-ficção e muitos de seus ensaios giram em torno
de sua figura. No jornalismo político, sempre recorreu a
anedotas pessoais para formular ou reforçar argumentos. Nunca se imaginou herói das histórias que concebeu, em parte porque não sentia necessidade de contrabalançar a tendência à abnegação. E o aspecto mais sedutor da persona por ele construída talvez seja essa abnegação. Orwell tinha um raro talento para dar aos leitores a impressão de estarem lidando não com um repórter ou um colunista ou um literato -um escritor,
enfim, mas com um homem comum. Seu método para
fazer as pessoas acreditarem no que escrevia era fazê-las
acreditar nele antes de mais nada.
Era um escritor, claro; na verdade, um grafômano: vivia apenas para escrever, e havia muito pouco de ordinário nele. Nasceu há cem anos, no dia 25 de junho, em
Bengala (Índia), onde o pai era subagente no Departamento de Ópio do Serviço Civil indiano. Levado para a
Inglaterra com um ano de idade, lá foi criado pela mãe.
O sobrenome da família era Blair; e o nome dado ao menino, Eric. Em 1907, o pai passou três meses com a família, entregando-se à vida doméstica com desvelo suficiente para engravidar a mulher, a quem só voltaria a
ver em 1912. Nessa época, Orwell frequentava como
bolsista a escola St. Ciprian, sobre a qual escreveria anos
mais tarde no ensaio "Such, Such Were the Joys" [Essas
Eram as Alegrias]. Empenhou-se nos estudos e ganhou
uma bolsa para Eton, onde começou a carreira de auto-anulação. Aluno deliberadamente relapso, conseguiu
ficar em 138º lugar num total de 167 estudantes. Depois,
em vez de tentar entrar para a universidade, ingressou
na Polícia Imperial e foi para a Birmânia, cenário dos
ensaios "A Hanging" [Um Enforcamento] e "Shooting
an Elephant" [Atirando num Elefante]. Em 1927, após
cinco anos na Birmânia, estava de licença na Inglaterra
e sem perspectiva de emprego: resolveu demitir-se.
Passou os quatro anos seguintes como vagabundo e
trabalhador itinerante, experiências que inspiraram
"Na Pior, em Paris e em Londres", de 1933, o primeiro
texto assinado com o nome George Orwell. O escritor
deu aulas durante um breve período, trabalhou numa
livraria -tema do ensaio "Bookshop Memories" [Memórias de Livraria]- e passou dois meses viajando pelos distritos industriais do Norte da Inglaterra, reunindo material para "A Caminho de Wigan", publicado em
1937. George Orwell passou o primeiro semestre do ano
de 1937 lutando contra os legalistas na Espanha, onde
foi ferido por um franco-atirador fascista com um tiro
no pescoço e testemunhou a brutal eliminação, na
Aliança republicana, dos partidos revolucionários pelos
comunistas. Em "Lutando na Espanha", de 1938, Orwell
narra esses acontecimentos de forma corajosa e iconoclástica -embora essa não fosse a única obra no gênero- e conquista assim a posição de principal escritor
anti-stalinista da esquerda britânica, posição que conservaria até morrer.
Durante a guerra, Orwell assumiu um cargo na seção
indiana do Serviço Oriental da BBC. Lá produzia e, juntamente com T.S. Eliot, William Empson, Louis MacNeice e outros escritores ilustres, dava palestras radiofônicas, sobre temas literários na maioria das vezes, no
intuito de conseguir a participação dos indianos no esforço de guerra britânico. Pela primeira vez, desde 1927,
recebia salário equivalente ao que recebera como policial na Birmânia, mas considerava esse trabalho propaganda -sentia-se, admitiu, "uma laranja esmagada
por uma bota imunda"- e, em 1943, pediu demissão.
A sala 101 da BBC
Trabalhou algum tempo como
editor de literatura e como colunista do "Tribune", jornal socialista editado por Aneurin Bevan, líder da ala
mais à esquerda do Partido Trabalhista britânico e figura a quem Orwell admirava. Em 1946, após o sucesso de
"A Revolução dos Bichos" e já muito doente dos pulmões, se recolheu a um dos lugares mais úmidos das
Ilhas Britânicas -a ilha de Jura, bem afastada da costa
escocesa.
Quando seu estado lhe permitia escrever à máquina,
permanecia num quarto o dia inteiro, fumando fumo
de rolo e escrevendo "1984". Segundo os biógrafos, a
carreira da personagem de Winston Smith no Ministério da Verdade em parte se baseia na carreira do próprio escritor na BBC. A sala 101, câmara de tortura na
cena crítica do livro, foi inspirada na sala de mesmo número onde o Serviço Oriental da emissora se reunia em
comitê; o que nos dá uma idéia do quanto Orwell apreciava essas reuniões compulsórias.
Sua primeira mulher, Eileen, com quem adotou um
filho, morreu em 1945. Depois disso, chegou a pedir várias mulheres em casamento, às vezes sugerindo, como
forma de persuasão, que morreria em breve deixando
sua viúva com um valioso patrimônio, mas nenhuma
mordeu a isca. Em 1949, quando de fato já estava no leito de morte, casou-se com Sonia Brownell, mulher de
sex appeal largamente reconhecido.
Brownell já tinha ido para a cama com Orwell uma
vez, em 1945, aparentemente por um misto de piedade e
desejo de dormir com escritores famosos, um de seus
hobbies. O casamento foi realizado num quarto de hospital, Orwell morreria três meses depois. O escritor vendeu mais livros que qualquer outro autor sério do século 20: "A Revolução dos Bichos" e "1984", juntos, foram
traduzidos em mais de 60 línguas; em 1973, as edições
em inglês ainda vendiam 1.340 cópias por dia, e os royalties foram todos deixados para a viúva. Brownell não
hesitou em dissipá-los. Morta em 1980, morreu na pobreza ou quase. Hoje a conservação da sepultura de Orwell, no jardim de uma igreja em Sutton Courtney, em
Oxfordshire, é feita por voluntários.
Orwell foi psicanalisado postumamente, mas não há
grande mistério nas escolhas que fez na vida. Repetidas
vezes explicou suas razões com toda a clareza nos próprios textos: queria desclassificar-se. Desde os tempos
da escola St. Cyprian e talvez até antes, via o sistema de
classes como um sistema de opressão e nada além disso.
A culpa (o termo é dele) que sentia por sua posição de
membro da burguesia imperialista branca precedia seu
interesse em política. Passou a maior parte do tempo
criticando os socialistas profissionais, especialmente os
líderes do Partido Trabalhista britânico, pois, fora sua
preocupação com a igualdade, não havia grande coisa
no socialismo que importasse para ele. Suas noções de
economia eram rudimentares, e tinha pouca paciência
para as contemporizações habitualmente exigidas na
política. Em 1945, após a rendição alemã, Churchill e os
conservadores perderam a eleição, e o governo trabalhista assumiu o poder, com Bevan como ministro da
Saúde. Menos de um ano depois, Orwell reclamava de
nada ter sido feito para abolir a Câmara dos Lordes.
Chá no pires
Não se contentava em atravessar ocasionalmente as fronteiras entre as classes. Transformou
a própria vida numa espécie de laboratório: como viver
na ausência de classes. A intensidade e o radicalismo
com que se dedicava a essa experiência o tornavam
cruel e muitas vezes exasperante aos olhos dos amigos e
colegas. A insistência em dispensar toda comodidade
material, a recusa em usar chapéu e casaco no inverno
(apesar dos pulmões debilitados), o hábito de derramar
o chá no pires e sorvê-lo ruidosamente (à maneira da
classe trabalhadora) eram atitudes vistas pelos amigos
não como excentricidades pitorescas, mas como críticas ao seu vício burguês do conforto e das conveniências. E não estavam enganados.
Orwell era um homem brilhante e culto, com sotaque
de Eton e um bigode incomum, vagamente francês.
Vestia a mesma jaqueta de tweed todos os dias, fabricava (muito mal) os próprios móveis e vivia, quase sempre, a um passo da penúria e da imundície. Lia Joyce e
mantinha uma cabra no quintal. Era verdadeiro e insincero a um só tempo -segundo ele, para escrever honestamente, precisava publicar sob pseudônimo.
A escrita orwelliana seduz sem esforço, situando o autor numa tradição de escritores que, como Leslie Stephen dizia de Defoe, compreendiam o fascínio literário
exercido por uma narração clara dos fatos. Mas há bem
mais que isso em Orwell, evidentemente. Como assinala Christopher Hitchens em "Why Orwell Matters" (Por
Que Ler Orwell?, ed. Basic Books), livro mais crítico em
relação ao autor do que sugere o título, "Homenagem à
Catalunha" permanece um modelo de jornalismo político, "A Revolução dos Bichos" e "1984" são monumentos da literatura de resistência. Se esses últimos textos
foram usados para servir a determinados interesses no
Ocidente, isso não os impediu de dar coragem às pessoas no Leste.
Orwell prezava a honestidade. E era rápido em acusar
de desonestas as pessoas de quem discordasse. Mas,
quando se fala de seus textos, às vezes ocorre uma confusão entre honestidade e objetividade. "Dizia aquilo
em que acreditava" e "narrava tudo tal como era, tal como aconteceu" são comentários referentes a virtudes
distintas. Um dos efeitos da dicção orwelliana -dicção
de um homem sensato, modesto e inteiramente antidogmático, alguém que torce pelo melhor, embora resignado ao pior- é uma impressão de transparência,
por ele próprio identificada como o ideal da boa prosa.
Daí o choque causado por uma afirmação de Bernard
Crick na primeira biografia importante do autor, autorizada pela viúva Sonia Orwell e publicada no ano em
que ela morreu: o biógrafo declara ter tido dificuldade
para corroborar alguns dos acontecimentos relatados
nos textos autobiográficos de Orwell. Segundo Jeffrey
Meyers, cuja biografia "Orwell - Wintry Conscience of a
Generation" (A Fria Consciência de uma Geração, ed.
W.W. Norton) foi lançada em 2000, o escritor às vezes
"acentuava a realidade em nome do efeito dramático".
Portanto, para falar da "verdade" do que escreve Orwell, é preciso levar em conta suas premissas. Ele não
diz: "Objetivamente, assim era ou assim aconteceu,
qualquer que seja o ponto de vista". Diz apenas: "Assim
parecia ser ou pareceu acontecer na visão de alguém
com as mesmas convicções que eu". Desconsiderar isso
torna os textos orwellianos desconcertantes pela razão
equivocada. Não era repórter nem sociólogo, mas sim
advogado. Tinha opiniões políticas muito definidas e
escrevia para defendê-las. "Nenhum livro é isento de
posicionamento político", alegou em "Why I Write"
[Por Que Escrevo]. "Cada linha de texto sério que escrevi desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra
o totalitarismo e em defesa do socialismo democrático
tal como o entendo."
Isso posto, convém examinar a frase do button: "Orwell tinha razão". Para Hitchens, o escritor estava certo
em relação às três grandes questões do século 20: imperialismo, fascismo e stalinismo. Mas não há nada de excepcional nessa atitude. Orwell condenava o imperialismo, o fascismo e o stalinismo, mas não estava sozinho.
Muitos também condenavam, e desde então esse número só fez aumentar. Após o gesto de condenação, na
verdade importava decidir de que forma combatê-los e
procurar compreender as implicações para o futuro.
Nesse aspecto, Orwell estava quase sempre equivocado.
Considerava hipócrita qualquer inglês que se vangloriasse da liberdade e da prosperidade de que gozavam
os cidadãos de seu país enquanto a Índia permanecesse
uma colônia. No entanto não julgava a Índia capaz de
uma completa independência e até 1943 ainda sustentava essa opinião.
Orwell cunhou a expressão "Guerra Fria" e, depois de morto, tornou-se um herói para os que se empenhavam nela, mas ele execrava a idéia
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Orwell se opunha à Alemanha nazista. Mas, para ele, a
Inglaterra como poder imperial não tinha nenhum direito moral de entrar em guerra contra Hitler, e uma
guerra tornaria o país fascista. Esse é um dos temas do
romance "Um Pouco de Ar, Por Favor!", publicado em
1939. Naquele inverno, Orwell incentivou amigos a planejar "ações ilegais contra a guerra". Acreditava ser
uma boa idéia formar uma organização antibélica clandestina, precavendo-se contra os "processos fascisticizantes que antecedem a guerra", e previu seu confinamento num campo de concentração britânico, em decorrência de suas convicções. Prosseguiu nessa campanha até agosto de 1939. Com o pacto de não-agressão
entre nazistas e soviéticos, sua posição se inverteu.
Em "The Lion and the Unicorn" [O Leão e o Unicórnio], de 1941, acusou de "sabotagem" os intelectuais britânicos contrários à guerra. "Europeizados", eles zombavam do patriotismo, segundo ele.
Orwell não era um radical em matéria de cultura. Democracia e decência moral (uma vez limpo o sangue
nas calçadas) eram cruciais na sua visão do socialismo.
Seus admiradores sempre se lembravam da democracia
e da decência e davam um jeito de esquecer quase todo
o resto. Quando "Lutando na Espanha" finalmente foi
publicado nos EUA, em 1952, Lionel Trilling redigiu
uma introdução, considerada por Jeffrey Meyers "o
mais influente ensaio escrito sobre Orwell". Era um texto curto de ficção. "Com um orgulho torto e intransigente, Orwell apegava-se ao comportamento da última
classe dominante na antiga ordem", observou Trilling.
O escritor respeitava "as velhas virtudes burguesas".
Até "chegou a prezar objetos, bens materiais". Um perfeito anticomunista de interiores. É divertido imaginar
Orwell tomando chá no Clube dos Professores da Universidade Columbia. Compreender a perspectiva política do escritor ajuda a explicar a previsão, em grande
parte incorreta, acerca da vida no pós-guerra que é
"1984". Como assinala Hitchens, havia uma enorme lacuna na visão de mundo orwelliana: os EUA.
Nação vulgar
Orwell nunca esteve na América e,
segundo Hitchens, nunca demonstrou muita curiosidade pelo que se passava lá. Tendia a ver nos EUA uma nação vulgar, materialista e uma ameaça à língua inglesa.
Em última análise, porém, considerava melhor para a
Inglaterra ser Estado vassalo de Washington que sê-lo
de Moscou. Nem por isso via com otimismo um papel
crescente dos EUA no mundo. Acreditando numa forçosa derrocada do capitalismo, só podia imaginar algum tipo de regime totalitário como o único futuro reservado aos EUA. Expôs essa visão em 1947, nas páginas
da "Partisan Review".
Segundo Orwell, havia três situações possíveis num
mundo nuclearizado: um ataque nuclear preventivo
dos Estados Unidos contra a União Soviética; uma
guerra nuclear entre essas duas potências, varrendo do
planeta quase toda a raça humana e fazendo a vida regredir à Idade do Bronze; um impasse criado pelo temor do uso efetivo de bombas atômicas e outras armas
de destruição em massa -situação essa que ficaria conhecida como política da inevitável destruição mútua.
Para o escritor, essa terceira possibilidade era a pior delas: significaria a divisão do mundo entre dois ou três
superestados, incapazes de conquistar uns aos outros e
impossíveis de derrubar com rebeliões internas.
Muito provavelmente, sua estrutura seria hierárquica
com uma casta semidivina no topo e um grande número submetido à total escravidão na base. A liberdade seria esmagada com uma truculência sem precedentes.
Em cada Estado, criariam e manteriam a atmosfera psicológica adequada, graças a um completo isolamento
do mundo externo e a uma falsa guerra contra os Estados rivais. Civilizações desse tipo poderiam permanecer inalteradas por milhares de anos.
A terceira possibilidade identificada por Orwell foi o
rumo seguido pela história, claro. A política da inevitável destruição mútua norteou a corrida armamentista e
a Guerra Fria. O próprio Orwell cunhou a expressão
"Guerra Fria" e, depois de morto, tornou-se um herói
para os que se empenhavam nela, fossem eles liberais
ou conservadores. Mas execrava a idéia de Guerra Fria,
preferindo ser bombardeado de volta para a Idade do
Bronze, pois jamais se convenceu de que os Estados
Unidos defenderiam a liberdade e a democracia. "1984"
é exatamente a visão orwelliana de como poderia ser a
Guerra Fria: uma luta interminável e sem sentido entre
monstros totalitários. Orwell tinha razão?
Em 1949, o romance foi interpretado por alguns como
um ataque contra o Partido Trabalhista: no livro, dizem
que o regime do Grande Irmão derivou dos princípios
do "Ingsoc", isto é, do socialismo inglês. Orwell foi obrigado a publicar uma declaração para esclarecer suas intenções. E declarou-se simpatizante do Partido Trabalhista. "Não acredito que o tipo de sociedade por mim
descrito necessariamente se concretizará", escreveu,
"acredito contudo (dado o caráter satírico do livro) na
possibilidade de algo semelhante se concretizar. A meu
ver, idéias totalitárias se enraizaram nas mentes de intelectuais do mundo inteiro. Só tentei extrair delas suas
consequências lógicas".
Considero a atitude implicada nessa justificativa final
a parte lamentável do legado orwelliano. Se fôssemos
defender ou descartar idéias com base nas consequências lógicas que se poderiam extrair delas, não teríamos
idéia alguma, porque a última consequência concebível
para qualquer idéia é um absurdo, é sempre "contrária
à vida" de algum modo. Não vivemos apenas em razão
de idéias. Elas integram a mescla de costumes e práticas,
intuições e instintos que faz da vida humana uma atividade consciente suscetível de aprimoramento ou degradação. Dependendo das circunstâncias, idéias radicais podem ser instigantes, úteis como provocação, e
idéias moderadas podem ser imbecilizantes.
Um dos argumentos mais cansativos contra as idéias
é o que lhes atribui uma "tendência" para a catástrofe
-totalitarismo, relativismo moral, guerra de todos
contra todos. Orwell não inventou esse tipo de argumento, mas em "1984" forneceu um vocabulário que só
o fez prosperar.
"O Grande Irmão", "duplipensar" ("doublethink"),
"polícia do pensamento" ("thought police") são termos
muito citados como contribuições à riqueza vocabular
da língua. E de fato são. Porém, a exemplo de toda uma
categoria de palavras como "mentiroso", "pervertido" e
"louco", têm o dom de paralisar o diálogo, esvaziar a
discussão. Quando um tribunal permite o uso, num julgamento, de filme feito por uma câmera escondida, logo ouvimos alguém exclamar: "O Grande Irmão!".
Quando um político se refere à sua proposta de autorizar a derrubada de árvores em parques nacionais como um projeto "que respeita o ambiente", é acusado de
"duplipensar". Quando um crítico vê sexismo num
poema, é acusado de pertencer à "polícia do pensamento". São termos propícios para desacreditar qualquer
posição, funcionam como desabonadores universais. E
essa é uma das razões de Orwell ter-se transformado
num pensador político extremamente popular. Com
ele, as pessoas aprenderam a fazer qualquer desvio de
seus próprios princípios e projetos parecer um primeiro passo em direção a "1984".
No mundo, há tantos grandes irmãos e polícias do
pensamento quanto loucos e mentirosos. Em "1984",
Orwell pode ter pretendido revelar o verdadeiro caráter
do comunismo soviético; mas, por descrever ali um
mundo no qual não existem distinções morais entre os
três regimes fictícios que dominam o planeta, acabou
predispondo as pessoas a ver "tendências" totalitárias
em toda parte. Havia o totalitarismo visível da Rússia e
do Leste europeu, e havia também o totalitarismo invisível do chamado "mundo livre". Quando falamos em
Grande Irmão, geralmente nos referimos a um sistema
de vigilância oculta e de manipulação, à opressão sob
disfarce democrático, enfim, a algo diferente do sistema
concebido por Orwell, um sistema nada dissimulado,
do qual até se fazia propaganda.
O próprio Orwell pressentia tendências e era capaz de
desconsiderar distinções morais se se tratasse de algo
que detestava. Não distinguia, por exemplo, entre a
BBC e o Ministério do Amor: este aparentemente era tido como a consequência lógica da tendência dos meios
de comunicação de massa para controlar o pensamento. O ensaio "A Política e a Língua Inglesa", por anos um
dos principais itens do compêndio de redação para calouros universitários, constitui um perfeito exemplo
dessa fusão de objetos do desprezo orwelliano.
De certo modo, Orwell combinou a repulsa à prosa floreada e estereotipada a
outras de suas aversões -o fascismo, o
stalinismo e o catolicismo. No leitor, fica
a impressão de que o problema do fascismo (e dos dois outros ismos) é no fundo
um problema de estilo. São maus, porque sua linguagem é desonesta, porque
são feios. E não é o único exemplo desse
tipo de raciocínio em Orwell. Desde os
primeiros textos, o autor demonstrava
uma obsessão por odores corporais.
Metáforas olfativas talvez sejam a figura mais recorrente em sua prosa até o fim
da vida, quando elogiou Gandhi por exalar um cheiro limpo ao morrer. Mas a relação entre cheiro e virtude não era apenas metafórica para Orwell. O escritor
punha em dúvida a possibilidade de ser
genuinamente solidário com alguém que
cheirasse mal.
A prosa orwelliana é tão sedutora que
muitos leitores acreditam ver expresso
ali o seu próprio pensamento. Orwell
não era clarividente, não era infalível,
nem sequer constante. Mudou de idéia diversas vezes,
como a maioria dos escritores. Dramatizou situações e
fatos movido pelo desejo de tornar o mundo mais próximo do que gostaria que fosse, como a maioria dos escritores. Sempre disse o que pensava sem medir as palavras nem transigir, como poucos escritores. Espanta
que tenha sido ouvido de forma tão seletiva e possa ser
vítima de homenagens incongruentes como transformar seus livros em hinos a um status quo por ele execrado. George Orwell é considerado um modelo, quando
era deliberadamente pessimista e desajustado. Se querem alçá-lo ao panteão dos liberais bem-pensantes, deveriam ao menos permitir que suas contradições o
acompanhassem.
Louis Menand é ensaísta. O texto acima é uma versão reduzida de artigo publicado originalmente na revista "The New Yorker".
Tradução de Bluma Waddington Vilar.
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