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+ autores
Para historiador inglês, livros infantis
que fazem sucesso atualmente
são antiquados e podem expressar
a nostalgia por parte de seus autores
de um mundo em escala mais humana
Bruxas, rainhas e cavaleiros reciclados
Peter Burke
No último mês eu não pude escrever para o Mais! porque nossos
netos, Marco, 4, e Lara, 2, estavam hospedados conosco, e meu
trabalho consistia em ajudar a entretê-los.
Além de jogar futebol e passear no parque
com eles, esse entretenimento inclui ler para eles livros em inglês e em português,
pois os dois estão crescendo bilíngües. Lara gosta de olhar os desenhos e, de vez em
quando, arrancar uma página do livro,
mas Marco quer que eu lhe explique as
ilustrações, além de ler as histórias. "O que
eles estão fazendo? Por quê?" Quando ele
volta para casa, as primeiras palavras que
me diz freqüentemente são "leia meu livro!" e, mais tarde, quando chegamos ao
fim do livro, "de novo!".
Marco sabe do que gosta, e entre seus favoritos figuram clássicos tradicionais, como "Chapeuzinho Vermelho" e "Pinóquio" (ambos traduzidos para o português), e uma prateleira inteira de livros em
inglês, como "What Do People Do All
Day?" [O Que as Pessoas Fazem o Dia Inteiro?], de Richard Scarry, a série de histórias de Ben Blathwayt sobre "The Little Red
Train" [O Pequeno Trem Vermelho] e
"The Gruffalo", de Julia Donaldson, este
em parte pelo ritmo da história e em parte
pelas ilustrações de Axel Scheffler.
Rip van Winkle invertido
Esses livros ingleses específicos não existiam
quando eu era criança. O que me surpreendeu mais enquanto eu os lia e relia
-já conheço alguns deles quase de cor- é
a semelhança que eles e muitos outros parecidos possuem, tanto em termos de temas quanto de estilo, com os livros de que
eu mais gostava quando tinha a idade de
meus netos. Isso me faz me sentir como
um Rip van Winkle invertido. Na história
holandesa sobre esse personagem, Rip van
Winkle adormece por algumas horas ou é
o que ele pensa -mas, quando volta para
casa, cem anos já se passaram e tudo está
mudado. Ele esperava que tudo permanecesse igual e encontrou tudo diferente. Já,
eu, esperava que tudo fosse diferente, mas
encontrei tudo igual.
Apesar das transformações sociais e culturais dos últimos 60 anos, o mundo desses
livros infantis se manteve surpreendentemente estável. Existem três temas principais: animais, o passado e o mundo cotidiano. Embora veja muito poucos animais
à sua volta em Istambul, onde vive a maior
parte do tempo, graças a esses livros Marco
é capaz de reconhecer e nomear, em duas
línguas, animais suficientes para lotar um
zoológico de dimensões médias, de antílopes a zebras.
Um tipo de livro sobre animais fala da
selva e descreve elefantes, girafas, leões, tigres, macacos, crocodilos e cobras. Outro
tipo de livro sobre animais gira em torno
de uma fazenda, geralmente uma fazenda
tradicional britânica ou do norte europeu,
com arados, paióis, vacas e cavalos, ovelhas e cães pastores, galinhas e -para
acrescentar um toque dramático- uma
raposa. Dessa maneira, milhões de crianças que nunca entraram em uma fazenda
-nem tampouco, por sinal, em uma selva- e que apenas de vez em quando foram a um zoológico estão mais familiarizados do que eu com a aparência e os hábitos
de toda uma gama de animais, que inclui
bichos imaginários, como o monstruoso
"gruffalo".
Um segundo tipo de livro moderno para
crianças é ambientado no passado, essencialmente na Idade Média européia, sendo
repleto de cavaleiros e damas, reis e rainhas, magos e bruxas, castelos e palácios (a
série Harry Potter leva essa tradição adiante). Dessa maneira, milhões de crianças
que vivem em cidades modernas e nunca
viram uma rainha ou um castelo, exceto na
Disneylândia, são capazes de reconhecer
todas essas imagens, e alguns entusiastas
conseguem até mesmo dar nome às diferentes partes da armadura de um cavaleiro
(eu mesmo me orgulhava de conseguir fazê-lo quando tinha 7 ou 8 anos).
Peças de museu
O mais surpreendente de todos é o terceiro tipo de livro, supostamente sobre o cotidiano atual, mas que,
na prática, oferece uma imagem do passado. Por exemplo, o hoje famoso trenzinho
vermelho é um trem a vapor, alimentado
de carvão e que solta uma espessa fumaça
preta. Ainda me lembro, com alguma dificuldade, de trens desse tipo em Londres na
década de 1940, mas, para as gerações posteriores, eles não passam de peças de museu. Outro exemplo: "What Do People Do
All Day?"é um livro sobre o cotidiano, mas
o que mostra é uma cidade pequena repleta de lojas pequenas -o açougue, a padaria, a peixaria, a quitanda etc.-, um mundo povoado por policiais amigáveis, vendedores e bombeiros (os favoritos de Marco), sem os supermercados e os shoppings
que fazem parte da realidade da maioria
dos leitores. O autor do livro, Richard
Scary, nasceu em 1919, mas continuava a
criar o mesmo tipo de livro para crianças
perto do final do século 20.
Para um historiador cultural, como eu,
esse tipo de continuidade cultural é fascinante, mas problemática. Por que os livros
infantis que fazem sucesso são tão antiquados? Por que eles continuam a repetir os
mesmos temas? Será que seus autores simplesmente reciclam a obra de seus antecessores ou será que esses temas os atraem
por alguma outra razão? Uma resposta a
essas perguntas talvez consista em tomar
nota de alguns poucos casos de histórias
modernizadas que soam como uma resposta à ascensão do feminismo.
Em "Room on the Broom" [Tem Lugar
na Vassoura], por exemplo, a bruxa não é
mais uma mulher malévola, mas boazinha.
Em "The Princess Knight" [O Cavaleiro-Princesa], a heroína derrota todos os cavaleiros que combate (Lara provavelmente
vai gostar dessa história dentro de um ou
dois anos).
Mesmo assim, o mundo da magia e das
vassouras de bruxas, no primeiro caso, e
das espadas e dos escudos, no segundo,
ainda é o mesmo que o das gerações anteriores. Outra possível resposta a minhas
perguntas é que determinados temas são
intemporais -são os temas que mais
agradam às crianças, porque estas estão
mais próximas dos animais, psicologicamente falando, do que estão os adultos, assim como estão mais próximas do mundo
das fazendas e cidades pequenas, e também porque estão mais próximas das batalhas nas quais uma pessoa golpeava a outra
na cabeça, em lugar das batalhas modernas, nas quais um soldado pressiona um
botão que, por sua vez, dispara um míssil
que destrói uma cidade inteira.
Distância dos leitores
Esses argumentos possuem alguma força, embora eu
tenha minhas dúvidas sobre a idéia de "intemporalidade". Quando surgiram os primeiros livros para crianças, na Europa do
século 18, a distância entre o mundo dos livros e o mundo no qual vivia a maior parte
dos leitores ou ouvintes crianças não era
muito grande. Ainda existiam muitos reis e
rainhas, os soldados ainda usavam alguma
armadura e espadas, e ainda se acreditava
amplamente na existência de bruxas. Mas a
distância entre o livro e seus leitores vem se
ampliando paulatinamente, a ponto de hoje estar enorme.
Assim, às vezes me pergunto se os autores dos livros infantis de hoje não escrevem
primeiramente para eles mesmos, expressando sua própria nostalgia de um mundo
que era erguido em escala mais humana. O
que as crianças desejariam, se tivessem a
possibilidade de escolher? As crianças lêem
os livros que lhes são dados ou que encontram nas seções infantis das livrarias e bibliotecas, e a maior parte do que existe à
sua disposição segue linhas tradicionais.
Seria interessante vermos alguns livros
infantis que incluíssem objetos contemporâneos, tais como celulares, supermercados ou os computadores que as próprias
crianças passam cada vez mais tempo
usando. É possível que já existam alguns livros desse tipo, mas, até agora, nem Marco
nem eu os descobrimos.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (ed. Jorge Zahar) e "O
Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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