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Ponto de fuga
Um ar triste
Jorge Coli
especial para a Folha
Frei Filippo Lippi era um pintor renomado. O hábito de
carmelita não lhe tolhera a atração imperiosa pelas mulheres. Capelão do convento de Santa Margherita, na cidade
toscana de Prato, pede à madre superiora que lhe autorize
tomar uma noviça como modelo para a Virgem Maria.
Dessas sessões de pose nasceu um filho, Filippino, que não
se fez frade, mas se tornou também artista.
Filippo, o pai, introduzira uma elegância suave na heróica pintura florentina do século 15, por meio do traço caligráfico e flexível, das transparências aéreas, das cores luminosas. Seu discípulo, Sandro Botticelli, conduziria esses
princípios a um apogeu de linearidade elegíaca que, grácil
ou vigorosa, vem habitada pela nostalgia de alguma perda
secreta e irremediável. O pequeno Filippino tinha 12 anos
quando seu pai morreu, em 1469. Entrou, então, como
aprendiz no ateliê de Botticelli e se embebeu tanto dessa
arte que suas primeiras obras se confundiam com as do
mestre.
Nos últimos 150 anos, Botticelli adquiriu imensa celebridade; a imagem de sua Vênus banalizou-se em reproduções de todos os tipos, que vão da caixa de chocolates à estátua de jardim. Filippino Lippi é muito menos conhecido.
No tempo dos dois pintores, porém, chegou a ser celebrado acima do grande Sandro e teve fama que se prolongou
por mais tempo, antes que eles fossem esquecidos. O gosto
"pré-rafaelita" do século 19, as sensibilidades requintadas
e decadentistas os redescobriram, elevando Botticelli às alturas, como o fez Proust. A Filippino Lippi concedeu-se
uma posição subalterna.
Par - Uma exposição se encerrou no mês de julho, em Florença, que reuniu obras de Botticelli e Filippino Lippi. O
nome do primeiro aparece grande no catálogo, o do segundo, bem menor, embora em 2005 transcorra o quinto
centenário de sua morte. Apesar dessa estratégia que põe
Botticelli na frente para atrair público, a mostra equilibrou
os dois artistas, acrescentando alguns outros (entre eles
Leonardo da Vinci) que iluminam a compreensão de ambos. Foi instalada no Palazzo Strozzi, obra-prima da arquitetura florentina no Renascimento, mansão que Sandro e
Filippino freqüentaram.
As trajetórias se enlaçam. Ambos conheceram o apogeu
de um humanismo voltado para a Antigüidade, mas
ameaçado por um sentimento de culpa religioso, que irrompeu na crise espiritual e política, provocada por Savonarola nos anos de 1490. "A melancolia neoplatônica que
se tornou moda com Marsilio Ficino se transformaria em
inquietação cristã", escreveu Daniel Arasse no catálogo.
Nas salas da exposição, Filippino sobressai e se revela um
pintor espantoso, à altura do mestre, como queriam os
contemporâneos. Com meios diferentes, porém.
Hopper - Filippino Lippi sempre foi notado por seus ornamentos bizarros, pelos ambientes fantásticos que soube
criar, pelo "delírio decorativo", como assinalou um crítico, cujo exemplo mais extraordinário se encontra nos
afrescos de Santa Maria Novella.
O que de hábito se percebe menos, e a exposição revela, é
a atmosfera suave, a claridade pálida recobrindo as paredes, a presença do ar. Se Botticelli fez personagens sonhadores e nostálgicos, com Filippino é o mundo que se torna
cúmplice da melancolia. O pequeno quadro da rainha
Vasti, repudiada pelo marido que encontrou nova mulher,
é incomparável retrato da solidão e do abandono. Ela está
só, diante das muralhas, cujas paredes lisas formam um
suporte para a luz difusa. No fundo, algumas montanhas,
algumas brumas e duas árvores que unem suas copas,
criadas por um grafismo rápido e transparente.
Injusto - A mostra do Palazzo Strozzi teve uma primeira
realização em Paris, mas ampliou-se e transformou-se por
completo em Florença. É exemplar. Associa quadros por
temas, provocando interrogações, sugerindo perspectivas
renovadas de conhecimento. Mas isso surge depois que a
beleza irresistível das obras, tão harmoniosamente dispostas, invade a alma. Foi concebida pelo francês Daniel Arasse, notável historiador da arte, que morreu no final de 2003
aos 59 anos.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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