|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cinema
O diretor holandês George Sluizer fala de sua adaptação para as telas do romance de José Saramago, que deve estrear na Europa no dia 19 e, em outubro, no Brasil
A jangada de pedra à deriva na película
Juliana Monachesi
free-lance para a Folha
O diretor que venceu o antiimperialismo de José Saramago chama-se George Sluizer. Conhecido pela enigmática dupla filmagem de
"The Vanishing" (a primeira versão, holandesa, lançada no Brasil com o nome "O Homem Que Queria Saber", em 1988; a segunda, americana, difundida
aqui como "O Silêncio do Lago", de 1992), cujo final
perturbador ganhou desfecho edulcorado na versão
hollywoodiana, e também pela experiência traumática
de, a dez dias de terminar o promissor thriller erótico
"Dark Blood" (1993), receber a notícia da morte de seu
protagonista, o ator River Phoenix, Sluizer, 70, tem uma
longa história com a cultura de língua portuguesa.
Seu primeiro longa-metragem, "A Faca e o Rio", foi
filmado no Brasil, com Jofre Soares e Ana Miranda. A
este seguiram-se vários filmes e documentários feitos aqui e em Portugal, até o
presente "The Stoneraft" ("A Jangada de
Pedra", lançado no Brasil pela Cia. das
Letras), primeira adaptação de um romance de José Saramago para o cinema,
que relutava em vender os direitos de
seus livros para a indústria cinematográfica. A première aconteceu no World
Film Festival de Montreal, no final de agosto, e o filme estréia no Brasil em outubro, na Mostra Internacional de SP.
Como o sr. entrou em contato com a literatura portuguesa e José Saramago?
Eu diria que por duas razões: uma é
coincidentemente ter tido muito a ver
com Portugal na minha vida desde os
9 anos, viajando para lá; outra é ter
feito filmes em Portugal, o primeiro
sobre pescadores portugueses, depois estive novamente no país para produzir e co-dirigir um filme intitulado "Morto para Chegar em Casa" [1996] com
meu amigo [o diretor] Carlos da Silva. O link direto,
neste caso, foi minha co-autora Yvette Biro, uma
húngara que vive em Nova York. Quando ela saiu da
Hungria, ficou por algum tempo em Portugal, onde
teve contato com obras de Saramago, foi para os
EUA e lá um amigo em comum nos apresentou; nós
conversamos um dia, sete anos atrás, e ela disse:
"Você deveria ler o livro de Saramago". Li o livro e fiquei animado e interessado. Foi assim que começou.
O livro que você leu era "A Jangada de Pedra" ou outra
obra de Saramago?
Já foi "A Jangada de Pedra", foi esse o livro sobre o qual ela me falou, porque a Yvette Biro é uma roteirista e uma professora de cinema e ela me disse que
havia um filme ali, então eu primeiro li apenas "A
Jangada de Pedra", em francês. Ela escreveu o primeiro roteiro, nós falamos com o agente, e então começou o procedimento padrão de compra de direitos etc. Mas o fato de ela ter escrito uma carta a Saramago em que se mostrava muito apaixonada pelo livro, e de ele ter se encantado com isso, foi o principal
para que o projeto funcionasse. Ele gostou muito da
carta e, assim, foi mais fácil a aproximação.
E é a primeira adaptação de um livro dele para o cinema.
Sim, porque ele se opunha muito a vender os direitos
para pessoas de cinema. Na cabeça dele, filme era
Hollywood, Hollywood era capitalismo e era também trair o trabalho dos escritores, então ele não tinha nenhum interesse em vender nem mesmo para
o Spielberg -que pediu os direitos para "Ensaio sobre a Cegueira", me parece, e ele recusou. A agente dele provavelmente lhe disse "essas pessoas são ok,
não são monstros de Hollywood que vão baratear
seu trabalho". Quando eu lhe mandei o primeiro
rascunho, recebi uma carta de volta na qual ele era
em certos pontos bastante rigoroso, dizendo por
exemplo: "Eu não acho que você tenha entendido isso muito bem, você poderia mudar?". E eu imediatamente fui vê-lo em Lanzarote para defender as alterações, e posso dizer que ali nos tornamos amigos.
Qual foi a reação dele quando viu o resultado final?
É difícil dizer, eu estava sentado no fundo do cinema,
em Lisboa, bastante ansioso, e então, no final, ele se
levantou e disse: "Onde está George?"; fui até a frente
e ele me abraçou, um grande abraço ao estilo brasileiro, e disse: "Eu chorei; eu lhe agradeço muitíssimo". A principal satisfação que acho que teve foi ver
que não tentei fazer um filme de grandes efeitos, por
causa da quebra dos Pireneus etc. O tratamento que
eu dei para o filme não foi o de exibir efeitos, mas de
conseguir uma certa atmosfera por meio deles.
Que tipo de dificuldade você encontrou para transpor para a tela uma história tão alegórica e escrita em uma linguagem tão pouco convencional?
Não é fácil, houve um número razoável de rascunhos, um de 5.000 páginas, outro de 50, mudou muito. Nós trabalhamos nos roteiros escritos por Yvette
Biro e eu durante certo tempo, e finalizei a última
versão. Foi difícil manter a essência do espírito de
Saramago e do seu livro, simplificar sem ser simplista, tentar captar o sentimento principal do que eu achava que estava no livro sobre as personagens e a jornada. Sua linguagem não é fácil de transpor para a
forma cinematográfica. Eu li recentemente uma crítica que dizia: "É praticamente um milagre, porque o livro é muito difícil de ler por causa das longas sentenças sem pontuação. E no filme elas são curtas, é fácil, e ainda assim parece ser a mesma coisa". Então, acho que o essencial está lá.
A escolha desse livro específico tem relação com o atual contexto de unificação
européia, o euro e as animosidades em relação a este movimento de convergência?
O livro foi escrito em um período em
que, para tornar-se parte da unidade
da Europa, um país -certamente os
menores- tinha de abrir mão de sua
identidade. Portanto a questão que
Saramago se coloca é "nós pertencemos à Alemanha ou à Inglaterra mais
do que à África do Norte ou talvez até
à América do Sul, onde temos mais
em comum com as pessoas?"; e há a
atitude política dele, que assevera que
o centro rico deve olhar para a periferia, tem responsabilidade em relação
às ex-colônias que explorou. No livro,
quando a Península Ibérica se separa
do continente, vai em direção aos países com os quais tem um débito. Esse é o pano de fundo, não tanto do filme, que tem esse elemento,
mas que trata mais das cinco pessoas e do cachorro.
Você participou da produção brasileira de "Fitzcarraldo"
(Werner Herzog) e realizou seu primeiro longa-metragem aqui. De onde surgiu seu interesse pelo Brasil?
Eu sempre fui muito fascinado por continentes para mim desconhecidos. E acho que parte da minha descoberta de identidade ocorreu enquanto estive no
Brasil, por entrar em contato com uma maneira diferente de vida; eu me encantei com o espírito que vi nos olhos das pessoas. Meu primeiro filme foi baseado em "A Faca e o Rio", de Odylo Costa, filho [1914-79], com atores brasileiros. Conheci Odylo em Paris, perguntei se poderia adaptar o livro, mas fiz a ressalva: "Eu nunca fui ao Brasil, mas me apaixonei pela história". Ele disse que era isso que importava. E novamente eu ganhei o grande abraço brasileiro.
Texto Anterior: Et + Cetera Próximo Texto: O historiador globalizado Índice
|