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AS PALAVRAS DA HORA
Com 62 mil verbetes, o "Dicionário de Usos do Português do Brasil", elaborado
pelo lexicógrafo Francisco Silva Borba e sua equipe, radiografa os últimos 50 anos da língua escrita no país, baseando-se sobretudo em textos jornalísticos
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Evanildo Bechara
especial para a Folha
Resultado de muitos anos de pesquisa e descrição, o "Dicionário de Usos do Português do Brasil" do conhecido linguista Francisco
Silva Borba, com a colaboração de uma
equipe altamente qualificada e com a
apresentação gráfica sempre impecável
da editora Ática, chega às mãos dos estudiosos e do consulente comum, numa
época de extraordinária produção lexicográfica brasileira. Está claro que o "Dicionário de Usos" vem desempenhar, essencialmente, as mesmas funções de todo bom dicionário, isto é, oferecer ao leitor resposta adequada ao significado de
palavra ou expressão que desconhece ou
da qual tem apenas uma leve idéia e do
emprego adequado em dado contexto e
situação.
Todavia os dicionários mais recentes
quase sempre não vêm para substituir os
mais antigos. Ainda hoje não prescindimos do velho Morais, de 1813; do Aulete,
de 1881; do Figueiredo, de 1899; ou do
Laudelino, de 1939. É que o autor e a
equipe responsável se guiaram por postulados teóricos diferentes -e às vezes
até ingênuos- e, por isso, acabaram por
nos oferecer características que os distinguem e das quais, muitas vezes, não podemos prescindir.
Entre as características da lexicografia
moderna entre nós, duas nos chamam
logo a atenção: o deslindamento, sempre
que possível, entre enciclopédia e dicionário; e a invasão de informações gramaticais no domínio do léxico.
O "Dicionário de Usos", de Borba,
aproveitando o progresso da chamada
linguística textual, da pragmática e dos
estudos sobre aquisição do vocabulário,
concentra-se em três objetivos fundamentais: a) "Prover os usuários da língua
escrita de um instrumento eficiente de
agilização do uso escrito tanto na recepção quanto na criação do texto", isto é,
não pretende ser uma obra de utilização
passiva na descodificação da palavra
desconhecida que tem pela frente, mas
do movimento de descoberta de que precisa para utilizá-la criativamente na elaboração do seu texto;
b) "estimular a pesquisa vocabular e a
reflexão sobre o próprio uso da língua",
isto é, passar de um mero conhecimento
intuitivo da palavra a um conhecimento
reflexivo;
c) "fornecer elementos de avaliação
das propriedades sintático-semânticas
do léxico", isto é, a organização do verbete ministra também ao consulente informações sobre várias relações gramaticais
da palavra com as que entram no contexto em que está inserida, o que patenteia
como se encontra efetivamente usada e a
maneira como se distribui num amplo
círculo de gêneros textuais e com relativa
presença das várias regiões do país, pertencentes às literaturas romanesca, dramática, técnica, oratória e jornalística.
Principalmente a esta última, para garantir multiplicidade de
temas e autores, que
buscam refletir a experiência de uma comunidade que escreve sobre
seus conhecimentos,
emoções, sentimentos e
visões do mundo nesses
últimos 50 anos do século 20.
O público em geral manifesta-se favoravelmente diante do maior volume de
palavras que um dicionário encerra, na
convicção ingênua de que tanto melhor
ele será quanto mais milhares de termos
verbetados contiver. Na realidade, estatísticas têm demonstrado que o léxico
fundamental, efetivamente usado por
um falante médio, gira em torno de 2.000
palavras, ainda que se trate de línguas tão
diferentes como o inglês, o francês, o espanhol, o japonês e o chinês, não ficando
de lado o português.
Dada a amplitude e variedade do corpus ou banco de dados compreendido
na recolha da língua escrita em prosa no
Brasil, a partir de 1940 foram levantadas
mais de 70 milhões de ocorrências, das
quais se obtiveram 530 mil formas diferentes, que, lematizadas, chegaram a
quase 90 mil itens lexicais que permitiram atingir 62 mil entradas no "DUP".
Para atingir os objetivos de um dicionário não só descritivo, mas também
normativo, a organização dos verbetes
teve de contemplar critérios tradicionais
na elaboração de uma obra dessa natureza, acrescidos de outros ditados por normas particulares à concepção da equipe
responsável. Diante de um corpus tão rico quanto diversificado, o critério de entrada é, naturalmente, o da ocorrência
combinado com o da colocação textual, aliado a outras particularidades estruturais da palavra em questão, como a alternância sufixal ("batimento" e "batição"; "estimação" e "estima"), o registro do gênero
("o personagem" e "a personagem") ou a grafia ("taverna" e "taberna"; "boate" e "buate").
Cuidado, nesse sentido, mereceu a grafia dos estrangeirismos, exemplificado
esse cuidado na opção por "show" (e
não "xou"), "álibi" (e não "alibi"), "superávit" (e não "superavit"), estes dois
últimos se opondo à norma oficial.
Subsídio gramatical acrescido no verbete oferece ao consulente informação
de como a língua se organiza patenteada em exemplos de usos efetivos do sistema, quer no nível das variedades, culta ou coloquial. O uso dos colchetes assinala a referência ao sistema da língua,
e o uso dos parênteses, antes das definições, às variedades de nível social.
Entre as informações de natureza gramatical, conta o consulente com certas
particularidades de substantivos que se
usam com traços opositivos, como concreto/abstrato (uma fatia de "abacaxi"/
eu acertei esse trabalho, que é um "abacaxi"), contável/não-contável (dispor
no braseiro o "peixe" embrulhado em
folha de bananeira/ todos se alimentam
de "peixe" fresquíssimo), animado/
não-animado (o "macaco" está na jaula/ hoje deu 17, "macaco" na cabeça),
humano/ não-humano (ela era um
"avião"/ viajou de "avião").
Na lexicografia tradicional, tais particularidades eram conhecidas como
emprego "figurado" e "não-figurado",
concepções ligadas a uma orientação
logicista da língua que hoje a linguística
moderna ou não reconhece ou a que
não dá importância de relevo. Muitas
vezes a oposição concreto/abstrato fica
sutil, o que dificulta a distinção pelo
consulente, como é o caso, por exemplo, de "bandeira branca" do "DUP":
"[Concreto" 1. Pano branco que se
mostra (ao inimigo) em sinal de trégua:
"Pegue a bandeira. A bandeira branca
(Alice acena com um guardanapo).
Ora, vejam só. A bandeira branca. Peça
água, vamos!" (HA)".
"[Abstrato de ação] 2. Proposta de
encerramento de animosidades; proposta de trégua: "Achei magnânimo
entrar em acordo e, com decência, estendi a bandeira branca: uma nota de 10
mil réis" (AS)."
Também os adjetivos verbetados passam por uma subclassificação: os qualificadores (aqueles que acrescentam um
atributo do substantivo: "casa alta";
"garota inteligente") e os classificadores (aqueles que põem o substantivo
numa determinada subclasse semântica: "dança campestre"; "taxas municipais"),
levando-se ainda em conta os traços distintivos dos nomes, excetuando os casos
em que esses traços não controlam a polissemia. Tomemos um exemplo parcial,
ao acaso:
"Besta: Adj. [Qualificador de nome humano" 10. tolo, bobo: "Vê se eu sou besta
de sustentar homem" (AB); 11. abobalhado, pasmado: "Um sonho que me deixou
besta" (BO); 12. pretensioso, pedante: "Ah, sujeita besta" (CAS); "um viajante
besta queria recitar" (MEC); [de nome não-animado] 13. insignificante, sem
importância, à-toa: "Já se compra essa fruta besta" (JC); "Não diz uma frase besta" (OG) (...)".
O verbo mereceu do "DUP" classificação mais minuciosa ainda, mas que, dominada pelo consulente, lhe vai ministrar as sutilezas semânticas e sintáticas
que a classe encerra para chegar a utilizações mais expressivas e adequadas do
conteúdo de pensamento. Já no "Dicionário Gramatical de Verbos" (ed.
Unesp), editado há anos, Borba e sua
equipe nos ofereceram exuberante material de consulta e de pesquisa.
O "DUP", tão inovador em informar
ao leitor particularidades semânticas,
não poderia deixar de lado as construções sintáticas que envolvem a palavra
ou expressão arrolada e descrita. Assim,
o complemento ("Compl.") está sempre
apresentado pela estrutura sintática que
lhe é pertinente: "Aposto: a + nome ("É o
título aposto a um rol de lembranças')";
"Reparar: (em +) nome ou oração conjuncional; 5. notar, perceber: "Ninguém
repara nela porque é uma estrela inútil"
(CP); "Já reparei que os maranhenses de
hoje se queixam mais do que trabalham"
(TS); "Você ainda não reparou como é
que a velha trata a Carmencita?" (LA)".
A leitura deste e de outros verbetes do
"DUP" enseja-nos um comentário final e
de extraordinária repercussão do nível
de valor de que se há de revestir uma
obra de tal natureza perante o leitor comum. Pela tradição dicionarística, a elaboração lexicográfica, com especial atuação, tem de tratar da língua culta ou padrão, que é mais importante do ponto de
vista educativo e cultural, pois que é nela
que se plasma a maioria dos textos escritos sobre os temas superiores da inteligência e da cultura nacional.
Desde logo, deixemos bem claro que
tal iniciativa não pressupõe o descaso
nem o menosprezo pelas outras variedades, regional, familiar ou popular, que se
aprendem no intercurso com a comunidade, e não na escola.
Se, por um lado, o dicionário que se
monta com um corpus extraído "com
absoluta predominância de literatura
jornalística" é muito válido "na medida
em que é aí que há não só variedade de
autores, mas principalmente grande variedade de assuntos e enfoques" -como
se lê no "DUP"-, por outro pode, com
essa absoluta predominância, não consignar usos linguísticos correntes na variedade escrita dita exemplar, de registro
imprescindível pela natureza normativa
de que deve se revestir uma obra de tal
envergadura e destinação. Cresce essa
responsabilidade normativa quando o
cultivo do idioma não conta com uma
agremiação consubstanciada e de pleno
respaldo público do porte da Academia
Espanhola ou da Academia Francesa,
para lembrar as mais conhecidas entre
nós. A Academia Brasileira de Letras se
aparelha para colaborar nesta atividade,
prevista nos seus estatutos.
De uns tempos a esta parte é verdade
que o estudo e descrição da língua falada
(tão vivamente presente em universidades, com muita oportunidade) têm merecido mais atenção dos linguistas e de
outros especialistas das ciências da linguagem. Isto, todavia, em mãos inábeis
de professores de língua e de didática,
tem produzido o desastroso efeito de rejeição dos usos da língua padrão escrita e de textos literários nela vazados, sob o
falso pretexto de se tratar de uma imposição da classe dominante, classe que
ninguém identifica com clareza. Felizmente, entre representantes das primeiras hostes, já se vai assistindo, ainda que
com certa discrição, a um estado contrastivo dos dois níveis (o falado e o escrito). A reação chega tardiamente, mas
sempre é tempo de rever a trajetória. O
apelo é antigo entre linguistas descritivistas do porte de Mattoso Câmara e de
um teórico da importância de um Eugenio Coseriu; é também velha entre escritores de nacionalidades diferentes, como
o espanhol Pedro Salinas, em palestra
antiga de mais de meio século, incluída
no livro "A Responsabilidade do Escritor
e Outros Ensaios".
Mas voltemos ao "DUP", em relação à
norma gramatical nele consignada por
imposição do corpus. Compare-se o que
dele foi transcrito antes sobre o verbo reparar com o que diz o dicionário de Aurélio, para a mesma acepção 5: "6. Fixar a
vista ou a atenção em; observar, ver, notar: "Repara, Marília/ o quanto é mais
forte" (Tomás Antônio Gonzaga, "Marília
de Dirceu", p. 122); "Não sei se vossemesê,
andando pelo sertão, já se deteve a reparar a alma das casas" (Viriato Correia,
"Histórias Ásperas", p. 173); "Não reparou
que d. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços" (Machado de Assis, "Várias Histórias", p. 56). [Em geral só se admite o uso do verbo, nesta acepç., como transitivo indireto; no exemplo de Machado de Assis, é lícito considerar elíptica a prep. em, podendo a abonação estar,
portanto, entre as da acepç. 8" (...) T.I. 8.
Fixar a vista ou a atenção; atentar: "E só
então reparou em como também o seu
cabelo era dum castanho bem claro, quase louro" (Lúcio Varejão, "Visitações do
Amor", p. 30); "Ó Lemos, repara naquela
senhora que ali passa" (Artur Azevedo,
"Contos Cariocas", p. 65); "Ninguém reparou no luto de Joana, ninguém quis saber quem lhe morrera" (Xavier Marques,
"Jana e Joel", p. 153). [Cf. reparar (6).]".
Conclui-se desta leitura do verbete que a língua literária ministra exemplos do
verbo reparar com a prep. "em" junto não só a termos nominais ou substantivos, mas também a oração substantivas conjuncionais (na classificação do
"DUP"). Acrescente-se que, ao lado das conjuncionais, a construção com "em"
pode ocorrer com as orações reduzidas:
Ele reparou em ela dar a resposta com a
maior presteza.
É possível que num riquíssimo banco
de dados recolhido na literatura jornalística para a montagem do "DUP" não tivessem aparecido exemplos da construção literária "reparar em que", e, por isso, o verbete não a pudesse registrar. A
experiência com o "DUP" poderia ser repetida para aqueles verbos que apresentam usos mais contrastivos entre o nível
de português tenso ou formal e o do português distenso ou informal, quando
comparado com o Aurélio, o Houaiss e o
Michaëlis.
Diante desses casos, o consulente se
convenceria de que o português desses
últimos 50 anos teria abandonado, por
arcaica, tal maneira de se expressar por
escrito, ou que o verbete peca por falta de
exaustividade na informação sobre os
usos gramaticais do verbo reparar.
Tal impressão seria em tese apressada,
além de constituir uma injustiça a esse
excelente produto lexicográfico que é o
"DUP", que considero o mais tecnicamente completo na descrição lexical de
quantos já se elaboraram em língua portuguesa.
Evanildo Bechara é membro da Academia Brasileira de Letras, filólogo e autor de "Moderna Gramática Portuguesa" e "Lições de Português pela
Análise Sintática" (ed. Lucerna), entre outros.
Dicionário de Usos
do Português do Brasil
1.674 págs., R$ 119,90
de Francisco Silva Borba. Ed.
Ática (r. Barão de Iguape, 110,
CEP 01507-900, SP, tel. 0/xx/
11/3346-3000).
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