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MICROCOSMO EM CELULÓIDE
Canudos se tornou uma referência simbólica para o cinema brasileiro, inspirando clássicos como "O Cangaceiro" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol"
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por Ismail Xavier
O sertão do buriti e "dos gerais"? Ou o sertão
das vidas secas?
Dentro de uma certa ordem de indagações,
essa distinção não ganha maior relevo, e há
uma tradição de crítica literária que pensa a representação das experiências nos dois contextos como inseridas
numa continuidade que permite fazer a ponte entre Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa,
marcar suas diferenças a partir do mesmo eixo de questões referidas ao complexo cultural, social, econômico
da "civilização do couro". O essencial aqui é a constituição de um modo de ser que se contrapõe à vida e à cultura em outras regiões. Vale o sertão como unidade e
prevalece a análise das formas como sua identidade, foi
sendo concebida a partir do regionalismo do século 19,
num processo em que se ressaltou de modo crescente
uma "lógica interna", formas de cultura e de distribuição do poder, pontos a partir dos quais se passou a explorar o alcance dessa unidade para além do tópico regional, como um símbolo ou uma síntese de totalidades
mais amplas, como na articulação particular-universal
de "Grande Sertão: Veredas".
Luz, espaço, duração O cinema herda essa tradição e, principalmente a partir do cinema novo, há um
variado percurso que toma como referência um momento privilegiado que se compõe quando "Vidas Secas" (1963), de Nelson Pereira dos Santos, conduz uma
pesquisa do espaço, da luz e da duração que sinaliza um
diálogo adensado com Graciliano Ramos; ou quando se
detecta, em Glauber Rocha, para além da leitura de Euclides da Cunha e José Lins do Rego, um vezo universal
e totalizante derivado da força do estilo, da invenção
formal que permitiu aproximações, ainda que genéricas, com o paradigma Guimarães Rosa.
Há pertinência nessas observações, mas vale lembrar
que, no caso do cinema, a diferença entre "os gerais" e o
sertão de Canudos é um dado mais decisivo, envolvendo dois trajetos bem distintos. O mundo de Rosa esteve
presente nas telas em percurso rarefeito, na quantidade,
e de menor densidade quando comparado com o cinema dos ciclos da seca e da caatinga.
No diálogo direto com o escritor há uma obra-prima
de referência, "A Hora e a Vez de Augusto Matraga"
(Roberto Santos, 1965), e o norte de Minas gerou o cinema de Prates Correia. No conjunto, porém, essa trilha é
de menor ressonância diante do imaginário do Nordeste. De imediato, vem à memória o cinema novo, mas os
dados de impacto e as questões de interesse estão longe
de se resumir aos anos 60-70. Antes e depois, encontramos filmes de referência que fizeram do sertão um tópos central do cinema que não movimenta suas câmeras nas ruas do Rio, São Paulo ou Salvador.
Grosso modo, há aí uma configuração paralela à da literatura, uma potência de linguagem que faz de Canudos uma referência simbólica jamais atingida pela
Guerra do Contestado [conflito entre camponeses e forças do Exército que teria matado pelo menos 8.000 pessoas, em Santa Catarina, entre 1912 e 1916", embora não
estejam longe as cifras de um e de outro massacre.
Da mesma forma, embora outras regiões tivessem
seus traços afirmados nas telas, o que mais se retoma, e
com maior força, é a imagem do sertão nordestino, experiência que vai compondo todo um sistema iconográfico e sonoro (1). Seja pela feição dramática das relações com a natureza, seja porque cenário de episódios
históricos emblemáticos, esse universo ganhou hegemonia no elenco dos filmes rurais de maior relevo. Em
sua teatralização, o mundo de cangaceiros e beatos
construiu matéria para um nacionalismo do espetáculo
("O Cangaceiro", Lima Barreto, 1953) ou para outras
tentativas de um "cinema de aventuras".
E o filme de autor deslocou os termos desse teatro,
preocupado com a história e a violência, a pobreza e a
religião, o poder e a justiça; ou também com a interrogação recorrente sobre identidades, do marco regional
ao nacional. E o campo das migrações -do retirante,
do beato ou do bandido social- potencializou tal presença, pois o cinema encontrou aí a intensidade do drama em conexão com um tratamento do espaço que impulsionou a invenção de formas do olhar, perante o homem e a natureza.
O sertão suscitou indagações específicas: como construir o olhar e a escuta? Como lidar com o fato de que a
presença do cinema nesse espaço era um sinal de "contato" no eixo das relações entre o arcaico e o moderno,
ato de troca mediado por uma máquina poderosa na
objetificação de tudo o que enfrenta a sua alça de mira?
Arranjo de poderes Eis aí uma questão que esteve
sempre presente, desde os primeiros clássicos do documentário que focalizavam condições-limite, como em
"Nanouk, o Esquimó", de Flaherty. O cinema brasileiro
a tem reposto sem cessar, num processo em que o registro de Benjamin Abrahão, "Lampião, Rei do Cangaço"
(1936), é um exemplo-chave.
As suas cenas -imagens mais de uma vez retomadas
pelo cinema- resultaram de um arranjo de poderes,
pois foram também os cangaceiros que escolheram que
teatro e que fisionomia deveriam exibir para o olhar da
câmera. Não eram sertanejos desprevenidos, mas um
grupo armado, dotado de estratégia. O resultado foi a
imagem negociada, resposta bem-humorada do grupo
que, ao que parece, errou na avaliação: o lance de vaidade mexeu com os brios do Estado Novo e intensificou a
caça aos cangaceiros até a morte de Lampião.
O cinema de ficção dos anos 60, com a filmagem em
locação, a travessia do espaço e a mobilização do habitante local, enfrentou esses mesmos problemas do olhar
mediado pela câmera, do sentido da representação, das
relações de poder (e alteridade) nele implicadas. Como
há um senso comum disposto a reiterar o estatuto do
sertão como unidade pautada por um marco identitário forte e específico, a idéia de invasão se impregna e o
problema permanece, mesmo depois de décadas de
produção documentária, de "Aruanda" (Linduarte Noronha, 1960) aos filmes de Vladimir Carvalho, incluído,
entre outras experiências, o inventário de traços de cultura feito pelas produções de Thomas Farkas (os filmes
de Paulo Gil Soares, Geraldo Sarno, Eduardo Escorel,
Sérgio Muniz).
Junto com essa tradição, as obras de ficção mais conhecidas definiram um campo de debate em torno da
apropriação de um patrimônio de cultura popular que
o cinema assumiu preservar contra o tempo e contra o
efeito das modernizações de que ele próprio foi parte.
Na atualidade, com a relativa descentralização dos focos de produção, define-se a pauta de uma nova visão
construída por cineastas da região, como Rosemberg
Cariry ("Corisco e Dadá", 1996), dentro do protocolo de
um olhar "mais interno".
Se o Nordeste foi um palco associado ao cinema novo,
ao lado dos bolsões urbanos de pobreza, o cineasta não
assumia estar aí "naturalmente" em casa e se colocou
esses problemas de forma então inovadora. Na trilogia
que marcou 1963-64 como o momento mais adensado
de relação com o sertão -"Vidas Secas", "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "Os Fuzis"-, não houve apenas a
denúncia da exploração do trabalho e a exposição das
condições materiais de vida; houve também um debate
sobre a forma do olhar e da escuta. Ou seja, uma interrogação que, pelo estilo, buscava fazer justiça a um tecido de experiências que deveria ser trazido à percepção
em sua complexidade.
Na busca de uma visão interna, o traço comum aos filmes do cinema novo foi a crítica à monumentalização e
à hipérbole nacionalista atualizadas em "O Cangaceiro". Daí a procura de um novo estilo de captar a luz, de
definir o lugar da natureza em razão de sua relevância
para a vida prática, de compor o rosto, o gesto e a palavra segundo o imperativo da autenticidade. Inventar
um olhar que atravessasse a distância (ou a denunciasse
como o fez Ruy Guerra, em "Os Fuzis", pelo contraste
de dois estilos no mesmo filme); ir ao centro da formação do mito onde se encontram a fé religiosa e a violência (Glauber Rocha).
Ordem fechada Glauber, em particular, radicalizou a imagem de um sertão como realidade autobastante, ordem fechada, capaz de compor um microcosmo como alegoria da nação. Havia algo afinado a "o sertão é o mundo" de Guimarães Rosa, e o cineasta evitou
o que poderia compor a imagem de um universo permeável, espaço de trocas e contaminações variadas. A
partir de "Deus e o Diabo", houve um movimento contrário, que começa com o próprio Glauber e seu "O
Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", de 1969
(que retoma elementos de "Os Fuzis"). Citando apenas
exemplos recentes, tal movimento chega a filmes como
"O Sertão das Memórias" (José Araújo, 1996) e "Baile
Perfumado" (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996), pautados pelo contato entre o arcaico e o moderno. Um ciclo se completa com "Baile Perfumado": na iconografia,
ele incorpora o verde e a exuberância do São Francisco à
saga do cangaço; e tudo aí parte da experiência de Benjamin Abrahão, sua filmagem de Lampião, num retorno de imagens célebres e reveladoras que ata os dois extremos do percurso aqui lembrado (2).
Novas metáforas Como parte da nova sensibilidade, há exemplos de uma atenção ao que, nesse complexo de cultura, é elo de passagem em processos de longo
prazo, condensação de peças de um imaginário milenar. O sertão se abre para novas metáforas, afinidades
antes não tematizadas, em "São Jerônimo" (Júlio Bressane, 1999), que repõe o problema da luz em sua imagem, inspirado em "Vidas Secas", mas agora num quadro que é de pesquisa do cromatismo, não do preto-e-branco. A topografia e a textura do solo são vistas em
outra chave, ressaltando o motivo do deserto (vida ascética, solidão) em sua conexão com uma figura central
na história do cristianismo.
Há uma expansão de referências que complicam, por
assim dizer, os termos da problemática do olhar como
representação e dispositivo de poder. O que não significa que ela não esteja presente hoje, ao contrário. A forma como se repõe, na imagem, o contraste moral entre
cidade e campo em "Central do Brasil" (Walter Salles,
1997) é um atestado da permanência da questão, assim
como a visada original da festa popular em "Crede-Mi"
(Bia Lessa e Dany Roland, 1996). E observar o espetáculo naturalista de "Guerra de Canudos" (Sérgio Resende,
1997) é ver o monumento suplantar o documento, pois
aí a pedagogia mais convencional precisa operar como
se os problemas do dispositivo e da representação estivessem resolvidos. Sem sucesso, nesse particular.
Notas
1. Esse sistema tem mobilizado uma variedade de estudos. Citando
dois recentes, há o trabalho de Ivana Bentes, em andamento, que
focaliza o trinômio sertão-favela-violência; e há a tese de Sylvie
Debs, "La Projection d'une Identité Nationale - Littérature et Cinéma au Brésil (1902-1998), le Cas du Nordeste" [A Projeção de uma
Identidade Nacional - Literatura e Cinema no Brasil (1902-1998), o
Caso do Nordeste], defendida na Universidade de Toulouse (França), em 2000;
2. Lúcia Nagib tem tematizado essa questão do regime das águas
na formação das utopias no cinema brasileiro recente.
Ismail Xavier é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP,
crítico de cinema e autor de, entre outros livros, "Alegorias do Subdesenvolvimento" (ed. Brasiliense) e "O Cinema Brasileiro Moderno" (ed.
Paz e Terra).
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