São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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Ponto de fuga

A beleza de São Paulo

Jorge Coli
especial para a Folha

A cidade desordenada ajuntou os volumes sem planejamento nem proporções. O velho é velho, decrépito, decadente -e não antigo. No novo, transparece a alma efêmera. As avenidas vão se alargando mais do que devem; os elevados provocam a necrose num tecido urbano já por si tão doentio. As ruas se emaranham e se perdem: deslocar-se em São Paulo, em certas horas, é um pesadelo apocalíptico. Mas é possível descobrir ordenações insuspeitadas dentro da desordem imensa.
Toda quarta-feira aparece, no caderno "Cotidiano", da Folha, um desenho que mostra a paulicéia por um detalhe, por um recorte. Vem acompanhado por texto sugestivo e poético. Os originais dessas imagens encontram-se expostos no Conjunto Cultural da Caixa (SP, praça da Sé, 111), por pouco tempo ainda. Possuem uma vibração muito fina. Telas a óleo vêm completá-la com força cromática e gestual. Vincenzo Scarpellini, o autor, nasceu em Roma. Vive em São Paulo há vários anos.
Seu olhar, olhar de quem sabe ver as coisas, ficou ainda mais aguçado pelo fato de ser estrangeiro, ainda não anestesiado pelo hábito. Como a técnica de Scarpellini é ao mesmo tempo contida e infalível, tudo se junta para formar uma espécie de lição amorosa. Surgem, assim, os passantes, o pedaço de monumento conhecido, o horizonte aberto ou bloqueado, o jogo de escalas da arquitetura, o presente e o passado que se superpõem. Scarpellini delineia a metrópole em fragmentos para melhor humanizá-la com uma vida curiosamente calma.

Lusco-fusco - No Masp Centro (SP, galeria Prestes Maia) há uma ampla mostra consagrada às pinturas de Gregório Gruber. Outra, menor, no espaço BM&F (SP, praça Antonio Prado), apresenta também obras suas; entre elas encontram-se algumas gravuras admiráveis.
Há mais de 30 anos o tema predileto do artista são paisagens da cidade de São Paulo. Isso se tornou uma espécie de marca evidente e reconhecível em sua arte. São imagens que, pelos personagens raros, lembram as fotos de Militão, no século 19. Mas, ao contrário do rigor bem seco e nítido daquele fotógrafo, Gregório Gruber prefere capturar madrugadas, quando a cidade se esvazia. No avesso da vitalidade que, para o bem ou para o mal, circula em São Paulo, suas telas buscam uma poesia de brumas imprecisas, de transparências, de personagens solitários. Paira, nessas imagens, um sentimentalismo discreto. Porém, há distinções de intensidade. Certas obras possuem convicção espacial. Outras cedem ao desenho um pouco amolecido, à repetição dos azuis e violetas, a uma sistemática leveza transparente dos edifícios. Há algo da facilidade ou da fórmula. Ao ser fiel a um tema e a certos procedimentos, o artista pode revelar sinceridade. Nem sempre, porém, isso basta.

Delicious - Um grupo amador, "The Cultura Inglesa Theatre Group", terminou, em SP, uma pequena temporada do musical "Kiss Me Kate", sob direção de Albano Sargaço. Em "Kiss Me Kate", os achados e a inspiração de Cole Porter explodem como um fogo de artifício. O elenco de jovens, talentosos, espirituosos, cheios de energia e bem preparados, vibrava por encontrar-se no palco, transmitindo ao público uma felicidade eletrizada. Se Brahms disse que o céu deve estar cheio de valsas de Strauss somente, é porque Cole Porter não era do seu tempo.

Femmes - Marion Vernoux, no filme "Instituto de Beleza Vênus", reunia um grupo de mulheres num instituto de beleza. Em "Um Dia de Rainha", que se encontra agora distribuído nos cinemas brasileiros, ela continua explorando sobretudo comportamentos femininos. Sabe encontrar uma graça refrescante. Cruza frustrações e acomodações por meio de acasos ou coincidências. Em filigrana, infiltra uma ternura deslocada, que parece não conseguir lugar legítimo no mundo de hoje. Ao tratar os personagens com afeto, apesar de suas fraquezas, Marion Vernoux afasta o cinismo. As situações e os tipos são desenhados de modo nítido e sutil ao mesmo tempo; eles não se deixam esquecer tão facilmente.


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