São Paulo, domingo, 02 de março de 2003 |
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+ música Iniciada no período militar, parceria entre Fernando Brant e Milton Nascimento se abriu para a utopia social LIRISMO E BOAS INTENÇÕES
Carlos Rennó
A voz de Milton Nascimento, uma
das mais singulares e emocionantes da face da terra, é tão carregada de sentidos que poderia
até prescindir de palavras: sozinha, já diz
tanto... Mas Milton, além de cantor, é um
grande compositor de canções, arte em
que palavras e sons devem dizer o mesmo, traduzindo-se. O mineiro Fernando
Brant foi o homem que, dizendo-se, traduziu Milton. Juntos, eles formam uma
das mais fecundas parcerias em quase 40
anos de MPB.
As canções da dupla partem de uma
melodia do músico, sobre a qual Brant
coloca sua letra. Os casos, raros, em que
o inverso acontece -dá para deduzir-
são as canções de versos metrificados,
em geral redondilhas maiores. Milton
costuma mandar sua música sem sugerir
um tema poético para ela; cabe a Brant
descobrir o que ela quer dizer e o que ele
quer dizer com ela.
Para ele, o significado de escrever letra
é esse: dar uma interpretação à música
dos parceiros (além de Milton, há Lô
Borges, Beto Guedes, Tavinho Moura,
Toninho Horta) e fazer disso um meio de
comunicação com o mundo. Voltados
para a comunicação, seus versos querem
participar da vida do povo, voltar-se
contra as injustiças e se solidarizar com
as suas vítimas. Essas boas intenções poderiam resultar em más canções, não
fosse o nível de qualidade do ajuste entre
as palavras e as músicas correspondentes
(e que músicas!).
O sentimento de solidariedade é chave
nas letras de Brant ("O solidário não
quer solidão", diz, em "Bola de Meia, Bola de Gude"), colaborando para constituir a sua dimensão humanista no quadro da nossa poesia cantada. Nelas, faz-se sentir o influxo drummondiano, sobretudo de "A Rosa do Povo". Os versos
são cortados pela realidade social. Uma
interseção entre lirismo e engajamento,
com o eu se assimilando ao mundo, que
é sentido, se observa mesmo nos temas
do amor, da mulher, do filho, do amigo
(este, aliás, bastante caro aos autores da
paradigmática "Canção da América").
Inaugurada em 67 com a existencial
"Travessia", a obra de Milton e Brant
cresceu durante o período sombrio do
regime militar. A densidade da experiência política faz então Brant se abrir para o
coletivo, e isso vai marcar seu trabalho
até hoje. Ele segue manifestando sua esperança e sua utopia social solidária.
Em "San Vicente", do início dos anos
70, uma atmosfera nebulosa envolve
uma imaginária cidade latino-americana
em cujo país houve -é o que se depreende- um golpe ("Coração americano/ Acordei de um sonho estranho/
Um gosto vidro e corte"). Uma alusão ao
clima geral vigente na época no Brasil.
Tema ecológico
Duas composições
de 75 expressam indignação contra atos
dos militares. "Saudade dos Aviões da
Panair (Conversando num Bar)" remete
à companhia nacional de aviação fechada na década anterior; saudade da Panair
significava, portanto, saudade dos tempos anteriores a 64... "Ponta de Areia" reporta sobre uma região e um povo que o
governo deixou no abandono, ao acabar
com a antiga ferrovia Bahia-Minas; esta
se inclui entre as canções brasileiras das
últimas décadas que já asseguraram sua
permanência no tempo, contando com
quatro gravações memoráveis por cantores da categoria de Milton, Elis Regina,
Nana Caymmi e, mais recentemente,
Gilberto Gil.
Brant foi um pioneiro no emprego do
tema ecológico, abordando em "Milagre
dos Peixes", de 74, a depredação da natureza. Explorando outro tópico até então
inédito no "mainstream" da MPB, "Promessas do Sol" denunciou, a seguir, a incompetência do colonizador português
em extinguir completamente a raça indígena, objeto principal e sujeito da canção: "Me cortaram o corpo à faca sem
terminar,/ Me deixando vivo, sem sangue, apodrecer"; "Que tragédia é essa
que cai sobre todos nós?". Já o negro rendeu duas parcerias antológicas de Milton
e Brant: "Raça", um tributo à etnia, e
"Maria Maria", canto a uma verossímil
figura popular de ficção.
No clima de antemanhã das Diretas-Já,
em 83 o civilista por excelência Fernando
Brant recorre ao país da América Central
sem Exército desde 48 para lançar sua
crença política em "Coração Civil": "São
José da Costa Rica, coração civil,/ Me inspire no meu sonho de amor Brasil".
Poesia virtual
Mas nem tudo são
ideologias nas suas letras. Há também
espaço para a expressão da religiosidade
(a católica "Paixão e Fé", feita com Tavinho), para o elogio à profissão de músico
(a popularíssima "Nos Bailes da Vida").
O seu próprio ofício ou arte é objeto de
canto. "Momentos e Canções", modelar
nesse sentido, fala, com precisão e simplicidade, do discernimento da poesia
virtual na cena e no instante bem como
do poder de comunicá-la em música:
"Eu só sei que há momento/ Que se casa
com canção;/ De fazer tal casamento,/
Vive a minha profissão".
Já "Itamarandiba", sobre cidades de
pedra do norte de Minas Gerais, parafraseia Drummond ("No meio do meu caminho/ Sempre haverá uma pedra./
Plantarei a minha casa/ Numa cidade de
pedra) para aludir, não à terra natal, assunto tão caro ao poeta de Itabira, mas,
quase isso, à região da infância do letrista
materialmente pobre, mas de grande riqueza humana, para ele.
Poética
Composta, em clima de
abertura política, em 81, "Vevecos, Panelas e Canelas" parece ganhar agora nova
aplicação à realidade nacional, mais especificamente no verso: "Respiro com
mais energia o ar de meu país". As linhas
finais definem uma espécie de poética do
letrista, a sugerir que letras se fazem, afinal, com palavras vitais e, antes de mais
nada, cantáveis: "Queria fazer agora uma
canção alegre,/ Brincando com palavras
simples, boas de cantar:/ Luz de vela, rio,
peixe, homem, pedra, mar,/ Sol, lua, vento, fogo, filho, pai e mãe, mulher". Carlos Rennó é letrista e jornalista, produtor do CD "Cole Porter e George Gershwin - Canções, Versões" (Geléia Geral) e organizador do livro "Gilberto Gil - Todas as Letras" (Companhia das Letras). Texto Anterior: ET + cetera Próximo Texto: Capa 02.03 Índice |
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