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+ estética
LEIA ABAIXO,
COM EXCLUSIVIDADE,
UMA CONVERSA DO ESTILISTA
FRANCÊS CHRISTIAN LACROIX
COM A ARTISTA
BEATRIZ MILHAZES
A Geometria que explode o quadrado e o círculo
da Redação
Christian Lacroix e Beatriz Milhazes conversam
no estúdio do estilista, em Paris. Um faz moda,
na França, a outra, pinturas, no Brasil -que
podem ser vistas atualmente na galeria Fortes
Vilaça (tel. 0/xx/11/ 3032-7066)-, mas descobrem que
compartilham o processo de evocar "alguma coisa muito bruta e muito barroca, muito primitiva, primal, nojenta, suja, humana e depois esfregá-la com ouro, pedras preciosas, coisas que brilham...". O diálogo entre
ambos, de que o Mais! adianta um trecho, será publicado em livro pela Kerguéhennec-Centre d'Art Contemporain, em setembro.
Christian Lacroix - Quando você pinta, fica muito tranqüila fisicamente ou há momentos, como na música
brasileira, muito sensuais ou enérgicos? Como esse
processo é muito longo, não há coisas que lhe escapam no caminho?
Beatriz Milhazes - Sempre tive medo da rapidez de meus
pensamentos e das imagens que me vêm à mente.
Mas elas são freadas pela lentidão de meu processo e
da técnica que utilizo. Em um determinado momento, paro e me pergunto: o que acontece agora que tenho quatro quadros sobre uma parede branca? Várias idéias surgem. Eu me concentro naquela que me
parece mais adiantada, no caminho mais claro.
Lacroix - Isso significa que você trabalha um pouco em
série ou você não procura fazer séries?
Milhazes - Esforço-me para evitar as séries. Quando trabalhamos em várias telas ao mesmo tempo, é mais
fácil recorrer à mesma paleta. Mas não é o que quero.
Tenho necessidade de passar de uma atmosfera para
outra, de uma paleta para outra enquanto crio e, sobretudo, de mudar continuamente os parâmetros
do problema. Quando faço uma exposição, gosto de
mostrar obras que apresentam essas variações.
Lacroix - Você já foi tentada pelo computador, a paleta
gráfica? O que você descreve como processo se aproxima muito do computador.
Milhazes - Não utilizo computador porque o monitor é
muito pequeno. Tenho uma necessidade compulsiva de contato físico com minhas telas.
Lacroix - Se você não olhar de perto essa matéria, que é
completamente física, pode pensar no computador.
Acho interessante o fato de realizar à mão uma coisa
muito contemporânea. E aí talvez possamos começar a falar de sua relação com a tradição e com o seu
país. É evidente que não podemos pensar que você
seja escandinava. Não digo que pensemos imediatamente no Brasil, mas creio que rapidamente sentimos a latinidade, o Mediterrâneo, a Espanha, alguma coisa que compartilhamos e que também é algo
que avança e que está na "modernidade". Em seu
trabalho há muitos elementos que vêm de igrejas, de
trajes. De onde vem sua relação com isso? Ela remonta à infância, a uma vontade de estar ligada ao
país que herdou tradições espanholas, mas que também é jovem?
Milhazes - É também um país muito misturado culturalmente. Utilizei conscientemente esse aspecto desde
o início. Essa relação com o passado me interessa,
mas é complicada porque a pintura vem da Europa,
depois dos EUA e depois dá uma volta com o modernismo brasileiro dos anos 30. Como fazer a ligação
entre essa história e minha cultura, as coisas que vejo, que vêm da minha cidade, dos meus interesses?
A arte decorativa, por exemplo, me fascina. No início eu utilizava tecidos, fazia colagens, meu trabalho
era mais geométrico. Comecei a alcançar uma liberdade com as formas no início dos anos 90. Foi nessa
época que fiz uma primeira exposição realmente interessante. Eu acabava de descobrir minha técnica,
podia fazer meus desenhos. Voltei a utilizar elementos industriais em minhas colagens há pouco tempo.
Lacroix - Ao mesmo tempo, há em você uma individualidade e uma independência que são formidáveis. Eu
não diria que sua pintura está na contracorrente
-não vamos começar o debate da pintura que está
viva ou morta, mas sempre presente-, no entanto
você quase se inscreve naquilo que aqui conhecemos
mais ou menos no mesmo momento, que estava ligado não à "movida" espanhola, mas a essa vontade
de um retorno a uma coisa física, depois de anos de
mínimo, de nada, de conceito, de branco sobre branco e preto sobre preto. Você deve ter sentido dificuldades em relação a isso.
Milhazes - É claro, tive problemas para que aceitassem
meu trabalho. Sinto-me uma artista geométrica, mas
não posso pôr tudo em um quadrado ou um círculo.
Lacroix - Imagino que as pessoas que estudaram com
você deviam estar ligadas ao que se fazia em Nova
York, enquanto você tinha sua linha com os tecidos
que recortava. Você devia ser a única.
Milhazes - Eu estava completamente só no Brasil. A arte
contemporânea brasileira é cativante, e há alguns artistas muito bons, reconhecidos internacionalmente, mas não os encontramos na pintura, eles fazem
principalmente objetos, arte conceitual. No início eu
estava isolada, sentia-me ligada ao modernismo brasileiro. Depois uma porta se abriu nos Estados Unidos. As pessoas foram atraídas por esse estilo, percebido pela crítica americana como uma pintura
abstrata que trazia coisas novas.
Lacroix - Existe um complexo em relação a essa utilização de referências populares?
Milhazes - Totalmente, sobretudo no meu meio. Essas
referências estão ligadas às camadas sociais mais pobres do meu país, elas não afetam os intelectuais e os
artistas. Elas têm uma conotação pejorativa, mas
sempre as utilizei. No entanto penso que hoje essa
relação está mudando um pouco. As elites começaram a dar importância ao fato de haver uma arte brasileira, e essas referências populares são cada vez
mais aceitas.
Lacroix - Tampouco tenho a impressão de que para você
fosse o caso de reivindicar raízes, mas simplesmente
que esses motivos lhe falavam, eles fazem parte de
você, de sua tradição, de sua família, do ambiente em
que você cresceu, sem tentar politizar ou buscar uma
alternativa. A noção de "exotismo" significa alguma
coisa para você?
Milhazes - Se você pensar nos clichês do exotismo, evidentemente não concordo. Mas a tropicália, por
exemplo, me atrai. É um movimento diretamente ligado à idéia de "tropicus".
Lacroix - Em seu catálogo intitulado "Mares do Sul", o
texto de Adriano Pedrosa faz um paralelo com Gauguin e a idéia de que é preciso ir além dos trópicos
para encontrar uma espécie de paraíso perdido. É
muito pertinente.
Milhazes - A imagem que me vem imediatamente ao espírito quando penso nos trópicos, em ser tropical, é a
da beleza, da sensualidade e do primitivismo. É uma
visão que me encanta, de pura fantasia, de sonho, de
desejo do prazer desconhecido. Gauguin fez uma
viagem em busca do "paraíso perdido" e introduziu
esses elementos em sua pintura. O projeto modernista brasileiro fez o inverso: alimentou-se da arte
européia para disseminá-la nos trópicos.
A beleza me cativa, mas acredito que, embora meu
trabalho possa ser bonito, representa todo um mundo claustrofóbico.
Lacroix - Eu não diria que é bonito, é muito indócil. Encontramos em "Mares do Sul" talvez não uma angústia, mas um lado um pouco labiríntico, uma busca orgânica, como se você passeasse em um corpo ou
um jardim do século 18 em forma de labirinto, no
qual procura o Minotauro com o fio de Ariadne. As
partituras talvez sejam o fio vermelho que impedem
que você se perca. Existem impressões em que pessoalmente me reconheci em meus momentos de
tristeza, quando sentimos uma certa dor de estômago. Eu não diria que é bonito...
Milhazes - Entendo perfeitamente essa sensação. A
claustrofobia vem de um excesso de imagens justapostas, de contrastes simultâneos de cores intensas
que podem tirar o fôlego. O labirinto é esse que você
descreve: um passeio num jardim do século 18 que
pode levar à claustrofobia ou não.
Lacroix - Podemos chegar à idéia de que isso come. Você
também come as coisas e depois você fagocita os outros. O que me choca é essa força cinética. É nessa
força centrífuga que você encontra o equilíbrio, essa
explosão... Quando estamos diante de uma de suas
telas, temos a sensação de explosão e de unidade ao
mesmo tempo. Há alguma coisa que mantém essa
explosão no lugar, que impede que seja completamente desordenada e faz que finalmente todo o seu
repertório seja imperceptível. É um todo, uma unidade. Não digo que exista uma serenidade, isso depende dos quadros. No entanto não podemos afirmar: trata-se de uma flor, com uma pérola e um pouco de motivo têxtil dos anos 60. Nunca. No fim temos uma impressão única. Você tenta contar sua
história e ir até o fim, ou deseja que o espectador leia
alguma coisa em particular?
Milhazes - Existem pelo menos dois tipos de espectadores: os amadores e o meio especializado -o crítico
de arte e os artistas. Eu tenho a sorte de conhecer especialistas que vêm ver meu trabalho em meu ateliê.
Paulo Herkenhoff, um crítico de arte, foi e continua
sendo uma fonte constante de conselhos. Tenho
amigos artistas com os quais também mantenho um
diálogo. As críticas americanas e européias publicadas na imprensa especializada sobre uma exposição
e sobre meu trabalho me são preciosas de modo geral. Os artigos com freqüência se distanciam da obra
e propõem leituras inesperadas. A opinião do público amador surge de modo direto e espontâneo, o que
me fascina constantemente. Às vezes ela também levanta questões. As crianças também têm uma relação especial com minha pintura, elas se identificam
facilmente e suas reações se exprimem sem filtros.
Lacroix - Eu ainda não falei do meu trabalho, mas creio
que há uma contradição perpétua, e é o que me faz
continuar de pé, como os equilibristas sobre seu fio.
É entre o "high and low", para usar uma coisa pejorativa, de "junky", e não ir em direção ao zen, mas à
meditação e ao universo. É um aspecto importante
em seu trabalho, sempre os dois extremos: a Espanha e o vodu, os católicos e os pagãos. Eu fui criado
na religião católica, mas uma religião engraçada.
Porque no sul da França as igrejas são construídas
sobre os antigos templos de Vênus, existe sempre
uma relação muito sensual. Mas não creio que possa
haver espiritualidade sem sensualidade. Tenho a necessidade de apreender a vida através do toque, tenho necessidade de respirar, falo com freqüência em odores.
Quando era criança, na escola maternal, colocava os
potes de tinta na boca, tinha desejo do amarelo, do vermelho, de me carregar como um caçador pré-histórico
se carrega da força de um animal, imagino. Como não
sou muito violento, eu preferia engolir a tinta (risos).
Esse aspecto me agrada muito em você, esse trabalho
transatlântico e perpétuo que conta sua família, seu povo, sua tradição. É talvez por isso que nos reconhecemos, eu com minha arte decorativa ou aplicada, não sei
realmente o que faço. Creio que temos esse mesmo processo de provocar encontros entre coisas que não têm
absolutamente nada a ver umas com as outras. Alguma
coisa muito bruta e muito barroca, muito primitiva,
primal, nojenta, suja, humana e depois esfregá-la com
ouro, pedras preciosas, coisas que brilham. É verdade
que isso fala às crianças, e não é um trabalho unicamente de impulso.
Milhazes - Todas essas contradições são fascinantes. Elas
funcionam como um motor, assim como o medo, aliás.
Tenho medo de muitas coisas. Você disse que eu tenho
medo do Carnaval, e é verdade. O Carnaval, a praia, a
floresta, a arte decorativa, o kitsch, as igrejas e até as cores -tudo isso me dá medo e me fascina ao mesmo
tempo. Dizem-me muitas vezes que sou corajosa por
fazer o que faço, e penso exatamente o contrário: faço
porque tenho medo.
Lacroix - Os arquitetos brasileiros a marcaram?
Milhazes - Eu me interessei muito pelo trabalho de Burle
Marx. Antes, minha relação com a natureza era mais ligada à reprodução dela. Hoje começo a prestar mais
atenção nessa relação com ela, é como a luz natural que
me lembra as igrejas.
Lacroix - As colagens, de que falávamos há pouco, participam do mesmo processo?
Milhazes - A técnica que utilizo na pintura se baseia no conceito da colagem. Eu pinto motivos sobre uma folha de
plástico e colo essa imagem acabada na tela. Depois retiro o plástico, como uma decalcomania. Minha pintura é feita da junção desses pequenos pedaços que eu
mesma pinto. Para as colagens sobre papel o processo é
diferente. Utilizo materiais de origem industrial: papéis
de chocolate, de bombons, e até fitas.
Lacroix - Você faz suas pesquisas em revistas, recupera coisas em latas de lixo ou são coisas muito limpas que você
compra na papelaria?
Milhazes - Neste momento estou fazendo uma verdadeira
coleção de papéis de embalagem, mas não qualquer
um. Prefiro não misturar as embalagens, limitando-me
às que exprimem a sedução, o prazer, o exagero. O sentido seria completamente diferente se eu utilizasse papéis de bombom com embalagens de sabonete.
Lacroix - Como você sabe quando um quadro está pronto?
Milhazes - Em princípio, o ponto final está muito ligado ao
instante em que sinto que as cores estão equilibradas. É
muito importante que eu não passe ao estágio seguinte,
em que o acréscimo de elementos se torna decoração.
Encontrei coisas que criam uma ruptura no olhar do espectador, mas que continuam orgânicas, abertas. É aí
que paro. Para minha última exposição em Nova York
eu tinha realizado um pequeno quadro que não me satisfazia realmente. Ao chegar lá, decidi não mostrá-lo e
vou retrabalhar nele.
Também já me aconteceu de jogar fora um quadro.
Existe até uma fase de meu trabalho, por volta de 1987,
da qual não tenho nenhuma tela. Duas ou três foram
vendidas, mas dei as outras a uma pessoa na rua. Não
podia guardá-las em meu ateliê, para mim eram como
fantasmas monstruosos.
Lacroix - O que é muito aperfeiçoado em seu trabalho é esse
lado aparentemente inacabado, que é interessante.
Existe sempre uma área não coberta. E, na verdade, se
essa área for pintada, torna-se papel pintado, não é
mais pintura.
Milhazes - Sim, quero manter a idéia de composição.
Lacroix - Você vê muitos outros artistas no Brasil e nos Estados Unidos? Compara seu trabalho com o de outras
pessoas?
Milhazes - No Brasil tenho alguns amigos artistas, mas o
trabalho deles não está realmente ligado ao que faço.
Nos Estados Unidos e na Europa tenho mais relações
com artistas que trabalham na mesma linha que a minha. Para mim é importante não ficar só. Philip Taaffe,
um pintor americano de cujo trabalho gosto muito,
também utiliza a idéia de decorativo. A inclusão de elementos da arte decorativa na pintura abstrata é uma
questão que retorna com freqüência.
Nos anos 70, Robert Kushner lançou a "pattern-painting" e nos anos 80 as pinturas de Philip são, de maneira
surpreendente, a melhor representação desse estilo.
Também estou em contato com outros artistas americanos e ingleses, como Polly Appfelbaum, Franz Ackerman, Fiona Rae, Sarah Morris, David Reed, Fabian
Marcaccio, para citar alguns.
Lacroix - Você tem reflexões que lhe vêm à cabeça em relação ao que acontece no Brasil e no mundo? O 11 de Setembro mudou seu trabalho em suas relações com os
Estados Unidos?
Milhazes - As grandes questões da vida, o mundo em que
vivemos, fazem parte de meu trabalho de maneira subjetiva. Meu ateliê é um universo à parte dessa realidade.
Meus sentimentos surgem por meio das cores, das formas, dos símbolos... Depois do 11 de Setembro o repertório dos anos 70 que me interessa está cada vez mais
presente em minha pintura, o símbolo de "peace and
love", por exemplo, se tornou uma constante.
Lacroix - Eu pessoalmente tenho essa angústia do fim do
mundo, do fim de qualquer coisa.
Milhazes - Nós perdemos o sentido de respeito.
Lacroix - É preciso lutar contra isso. Não podemos trabalhar da mesma maneira, mesmo que seja no sentido de
um trabalho mais alegre, de um trabalho mais espiritual. A prova disso é que seu trabalho se torna mais leve
e mais espiritual.
Milhazes - Certamente. Eu acredito na vida, na beleza das
coisas que trazem uma energia positiva. É também a arte que dá certo sentido à época contemporânea e que
pode mostrar um caminho diferente. É por isso que não
gosto das exposições que parafraseiam o mundo ou o
jornal matinal. Acredito na estética.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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