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Ponto de fuga
Terror e crueldade
Jorge Coli
Seis filmes de José Mojica Marins foram editados, há
dois anos, em DVD e reunidos num estojo pela marca
Cinemagia. É o resultado evidente de um trabalho feito
com cuidado amoroso, inteligência e conhecimento
aprofundado. São obras que têm o personagem de Zé
do Caixão como centro, ao qual se acrescenta o de Finis
Hominis, no filme do mesmo nome. Estão longe de esgotar a filmografia de Mojica Marins, que deve conter
muitos outros tesouros, mas permitem um contato
consistente com esse mundo de poderes criadores fora
do comum.
Há grande firmeza no modo de fotografar, definir os
ângulos, iluminar, montar. Essa certeza sem hesitação
surpreende pela energia expressiva das tomadas, conferindo a tudo presença e verdade. O simples modo de
mostrar o vulto de Zé do Caixão andando numa rua escura ou de expor um rosto contorcido pelo medo vem
carregado de intensidades capazes de provar que o essencial, em arte, não se aprende no colégio. Acrescente-se o imaginário desvairado, cujo tropismo é conduzido
pela exposição da crueldade visual: o cinema de Mojica
tem pulsões semelhantes àquelas que presidiram a escrita de Artaud ou de Sade.
Mojica foi classificado, um pouco facilmente, como
"primitivo". É verdade que seu cinema não demonstra
nem obediência a uma gramática convencional nem
fluência habilidosa. A rugosidade que se sente ali é antes
força que fraqueza; por contraste, ela demonstra que
muito cinema "bem feito", liso, escorreito e bem-intencionado permanece numa superfície sedutora, mas sem
substância e sem permanência.
Centros - As criações de José Mojica Marins são singulares e originais, não se assimilam a nenhuma outra,
mesmo no domínio específico do filme de terror. A história contada se esboça com traços largos e norteia a
ação sem muito rigor. O importante são situações intensas, episódios que adquirem, com freqüência, um
caráter autônomo e que se costuram como podem no
resto da trama.
A unidade é outra, origina-se em obsessões reiteradas
que seria fascinante estudar, como fez Carlos Primati
num ensaio sobre o caráter crucial do olho e do olhar
nessa obra. Os filmes se interpenetram, reapresentam
cenas vistas anteriormente, em obras precedentes, mas
renovadas em seus sentidos. Sobretudo, Zé do Caixão
torna-se mais que um personagem, vira uma entidade,
uma espécie de mito.
Outros atores foram diretores de si mesmos, criando
também silhuetas marcantes; Chaplin é o melhor exemplo. Porém talvez não haja outro caso de um diretor que
surja num filme, como Mojica em "Delírios de um
Anormal" (1978), para tranqüilizar uma vítima, explicando que Zé do Caixão não existe, é imaginário e, portanto, não deve ser temido. Como esse desdobramento
não se dá na realidade, mas na ficção do cinema, é claro
que Zé do Caixão ressurge mais real e mais cruel do que
nunca, desmentindo o ceticismo de seu criador.
Formas - Décio Pignatari assinalou o "satanismo baudelairiano" de Mojica Marins. Há, de fato, pontos em
comum entre os dois universos. Um deles é a admiração pela beleza feminina, perfeita, mas vulnerável, sujeita à destruição, ao apodrecimento. Porém, no avesso
de Baudelaire, o homem se ergue cruel, e a mulher, dominada, é sua vítima. Zé do Caixão, grande transgressor
porque se considera acima da humanidade e de suas
pobres crenças, está em constante busca insatisfeita de
uma "mulher superior", à sua altura.
Teias - A cultura de Mojica é eminentemente popular:
filmes num cinema de bairro em sua infância, quadrinhos e, é bem provável, histórias amedrontadoras de
tradição oral. Mas ela tem afinidades com certos grandes momentos da arte do Ocidente, como o teatro "de
horror" elisabetano. Seria, por exemplo, magnífico se
Mojica escolhesse um dia, por tema, a tragédia "Titus
Andronicus", de Shakespeare. Nela, um general romano, pai de uma moça que foi estuprada, teve as mãos decepadas e a língua arrancada, vinga-se, servindo à rainha Tamora, mãe dos dois criminosos, tortas feitas com
a carne e o sangue de seus próprios filhos.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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