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Ponto de fuga
O feitiço da lua
Jorge Coli
especial para a Folha
"Schoenberg deixa ressoar em completa liberdade
seus ritmos linguísticos. (...) O executante deve encontrar a melodia linguística da música." Assim teorizava
Albertine Zehme, primeira intérprete do "Pierrot Lunaire", cuja estréia se deu em Berlim, no ano de 1912.
"Sucesso incondicional, na sala se urrava", escreveu
Anton Webern. Os poderes sutilmente expressivos dessa obra, banhados de decadentismo, dependem de poucos instrumentistas, que devem ser exatos, mas sensíveis. Dependem ainda da solista, que deve dizer, entre o
canto e a fala, e com talento, os textos poéticos.
O "Pierrot Lunaire" foi apresentado há pouco, em São
Paulo, sob a regência de John Neschling, no ciclo de
concertos oferecidos pela Orquestra Sinfônica do Estado. A beleza era tanta, tão viva e dramática a interpretação da solista, Marianne Pousseur, que a sala imensa e
lotada reagiu, para dizer como Webern, numa vibração
incondicional.
No mesmo programa, o "Concerto para Violino", de
Berg, fazia as cordas brilharem como seda. Bastariam
estas composições para testemunhar que a Osesp, enquanto orquestra de primeiro plano, é capaz de trazer,
com regularidade semanal para um público que se alarga, as obras mais complexas do repertório. Mais ainda,
seu novo CD, consagrado às sinfonias 2 e 3 de Camargo
Guarnieri, mostra o papel estratégico de uma formação
musical desse calibre: registrar e divulgar, para muitos
ouvintes, aqui e no exterior, a grande música sinfônica
brasileira, em execuções que não empalidecem os desígnios do compositor.
Vôo - "Côndor", assim, com acento circunflexo, não
se refere à ave dos Andes, celebrada por Castro Alves. É
um personagem oriental, herói da última ópera escrita
por Carlos Gomes. Chefia as "hordas negras", bandos
de nômades fora-da-lei. Ele se parece um pouco com o
futuro Calaf, na "Turandot" de Puccini, já que se apaixona pela rainha Odalea ao vê-la surgir, dominando a
multidão numa cerimônia. A história se passa numa remota Samarcanda do século 17.
Outra lua - O Festival de Ópera do Amazonas, em Manaus, começou muito bem neste ano, com "A Valquíria", de Richard Wagner, e concluiu, ainda melhor, com
o "Côndor", de Carlos Gomes. A música é esplêndida,
tecida menos no orientalismo do tema que num espírito de volúpia "fin-de-siècle", inspirada por amores extáticos e suicidas. Carlos Gomes se renovou aqui, abandonando as melodias generosas e os efeitos bombásticos: o "Côndor", escreveu Andrade Muricy, "não é um
canto do cisne, mas uma indistinta, tateante aurora".
Trata-se, com efeito, de uma luz nova, cujos matizes
suaves prenunciam óperas futuras, envoltas em clima
d'annunziano, escritas por Montemezzi, Zandonai, pelo Mascagni de "Guglielmo Ratcliff", "Zanetto" ou "Parisina". O mood deliquescente, decadentista, que habita "Pélleas" ou "Pierrot Lunaire" é, de maneira curiosa, o
mesmo do qual emanou "Côndor": existem, dentro da
cultura, vasos comunicantes ramificando-se de modo
imprevisto...
Na apresentação de Manaus, véus estirados por cordas criavam prisões transparentes: a ocultação das mulheres por mantos e burgas, o desejo aceso pelo olhar, nesse mundo muçulmano inventado por Carlos Gomes, acentuavam a força poética. A invenção teatral foi de Bruno Berger-Gorski, do cenógrafo Renato Theobaldo, da figurinista Tânia Marcondes.
Estrelas - Na concepção cênica, simbólica e etérea, criada, em Manaus, para o "Côndor", evoluiu um elenco
sem falhas. Fernando Portari era o protagonista. Com
seu timbre incomparável, ele encarnou um Côndor de
aparência muito jovem. Forte e frágil ao mesmo tempo,
deixava-se atrair pela Odalea incendiada, a quem Celine
Imbert emprestou voz e alma. Luiz Fernando Malheiro
foi o maestro.
Não é muito frequente um espetáculo de tal categoria.
Como, ainda mais, ele revive uma criação, incomum e
admirável, de compositor brasileiro, deveria ser reapresentado em outras cidades e teatros, para que mais gente possa descobri-la.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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