São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003 |
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"DEPOIS DA TEORIA" ATACA O RELATIVISMO E O DESENRAIZAMENTO, MAS TENDE A IGNORAR EVIDÊNCIAS ÚTEIS O UNIVERSAL CONCRETO
D.J. Taylor
Bastou olhar para o parágrafo inicial de "Depois
da Teoria", com sua elegia de nomes (Derrida,
Lacan, Barthes, Foucault e "todos os outros")
por uma "idade de ouro" passada, para me arremessar 20 anos atrás no tempo, a uma reunião no início
dos anos 80 da Sociedade Literária da Universidade de
Oxford. A ocasião foi a visita de um acadêmico chamado Colin MacCabe, autor de um estudo diabolicamente
inteligente sobre James Joyce ao redor de cuja cabeça
despretensiosa pairavam nuvens de escândalo.
Caso de amor fracassado Um grupo de filósofos-artistas (na maioria) franceses que não acreditavam em "significado", mas numa multiplicidade de interpretações, que se deleitavam em exposições de hierarquia e gênero, que visavam a reduzir um texto a uma espécie de pó fino de pressupostos político-sexuais -tudo isso era instigante para um homem que havia chegado à dura conclusão de que o capitalismo estava esgotado e à conclusão -talvez mais dura- de que dificilmente algum capitalista, e praticamente qualquer pessoa vivendo sob o capitalismo, havia percebido isso. "Depois da Teoria", portanto, é o registro de um caso de amor fracassado de um ideólogo (um ideólogo espirituoso e apaixonado, deve-se dizer) que imaginou que a "teoria" pudesse reacender a chama do marxismo contemporâneo, mas que percebe que este último ficou muito para trás na maré pós-moderna. Eagleton começa o que pode ser descrito como uma polêmica imparcial, comentando algumas ironias sobre o animal conhecido como "pós-modernismo". Uma delas é que o pós-modernismo, com sua desconfiança das normas públicas, valores, hierarquias e padrões, parece suspeitamente uma das versões mais rigorosas do liberalismo econômico: "Só que os neoliberais admitem que recusam tudo isso em nome do mercado". Outra é que a "universalidade" que a maioria dos teóricos contemporâneos tenta adotar -o mundo visto como um enorme hipermercado monocultural- é contestada pelos fatos concretos. Estranhamente, os habitantes da maior parte da antiga União Soviética querem ter seus próprios selos postais assim como a possibilidade de beber Coca-Cola: em um mundo que supostamente fica menor a cada momento, o número de cadeiras na mesa da ONU aumenta misteriosamente. As cerca de 200 páginas em que a "teoria" finalmente fica sabendo como deixou de cumprir as fervorosas expectativas de Eagleton são irradiadas pela tradicional impetuosidade de Eagleton, uma quantidade razoável de pleonasmos (em que a mesma discussão fixa é emoldurada por meia dúzia de ilustrações semelhantes) e -outra antiga marca de Eagleton- a tendência a ignorar evidências úteis, caso elas atrapalhem ou obscureçam alguma das oposições resmungantes em que a polêmica cultural adora insistir. Moralismo católico Apesar de todo o desprezo de Eagleton pelo cavalheiro beletrista na biblioteca, houve muitas pessoas, pré-Barthes, que participaram das "leituras íntimas": a primeira desconstrução da prosa de Dickens, no contexto de sua carreira precoce de jornalista, foi realizada ainda em 1865 por R.H. Hutton. Depois disso -da dissecação em sua maior parte revigorante- surge o espetáculo de um moralista católico elegante e um tanto antiquado, resmungando contra o desenraizamento ("a criatura que surge do pensamento pós-moderno é descentrada, hedonista, auto-inventiva, incessantemente adaptável" etc.) e o relativismo pós-modernos ("qualquer pessoa que genuinamente acreditasse que nada era mais importante do que qualquer outra coisa... não seria exatamente o que reconhecemos como pessoa"), algo que atinge seus vôos mais altos, estranhamente, em alguns fragmentos de crítica bíblica -ver, por exemplo, seus comentários sobre o "Livro de Isaías". Não surpreende que a arma a que ele afinal recorre seja a boa e velha "intuição", algo cuja existência o teórico médio provavelmente preferiria negar totalmente. Minha própria intuição me convence de que a comuna neomarxista que Eagleton parece propor como antídoto aos males do mundo seria praticamente tão temível quanto o modelo do hipermercado internacional. Mas a enorme conquista de "Depois da Teoria" é mostrar exatamente quão formidável pode ser a presença do crítico cultural marxista, mesmo aqui no universo povoado e desanimador de Bush, Blair, a dissidência de Derrida e o célebre Jean Baudrillard, que fingiu duvidar de que a Guerra do Golfo tenha existido. David J. Taylor é crítico e escritor. É autor da biografia "Orwell - The Life" (ed. Henry Holt), publicada neste ano nos EUA e na Inglaterra. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Texto Anterior: Depois da teoria Próximo Texto: + trechos Índice |
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