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Cultura
O Rei do Jazz
UM DOS MAIS IMPORTANTES MÚSICOS EM ATIVIDADE, O PIANISTA
HERBIE HANCOCK RELEMBRA A PARCERIA COM MILES DAVIS NOS
ANOS 1960, FALA DE ELEIÇÕES NOS EUA E SOBRE O FUTURO DO GÊNERO
IKER SEISDEDOS
Lenda viva do jazz, o pianista Herbie Hancock
vive um dos melhores
momentos de seus
quase 50 anos de carreira brilhante. No início do
ano [em fevereiro], ganhou o
Grammy de melhor disco de
2007 por seu álbum em homenagem à cantora e compositora
canadense Joni Mitchell -"River -The Joni Letters" (Verve/
Universal).
Foi o primeiro disco de jazz a
ter recebido o prêmio máximo
da indústria musical em 44
anos (o último tinha sido
"Getz/Gilberto", de Stan Getz,
graças a um fenômeno chamado "The Girl from Ipanema").
Os últimos meses também
foram marcados por sua eleição para a lista da revista "Time" dos cem personagens mais
influentes e pelo fato de a Universidade Harvard lhe ter dado
a distinção de artista do ano.
Hancock é provavelmente o
músico de jazz que mais marcas deixou na história da cultura pop. Por exemplo, a trilha
sonora de "Blow Up - Depois
Daquele Beijo", obra-prima de
Michelangelo Antonioni.
Nos anos 1970, liderou a bastardização do jazz com "Headhunters", que marcou época
com seu 1 milhão de cópias
vendidas.
E, se nos anos 1980 popularizou o "scratch" -técnica empregada pelos DJs de rap-
com "Rockit", nos anos 90 viu o
trabalho que fez para o selo
Blue Note no início de sua carreira ser apropriado pelo hip
hop e o acid jazz, conquistando
um novo tipo de ouvinte.
Daquele tempo, esse artista
camaleônico, membro do inesquecível segundo quinteto de
Miles Davis no final dos anos
1960 -talvez a melhor formação jazzística que já existiu-,
conserva as mãos finas que
chamavam a atenção na elegante e distante capa de seu
primeiro disco como artista
principal, de 1962.
Foi então que o mundo descobriu um prodigioso pianista
de Chicago de formação clássica, um improvisador incansável, capaz de introduzir Debussy no mais arraigado discurso da música negra.
Aos 68 anos, Herbie Hancock ainda veste cores escuras
e exibe forma física invejável.
Lê revistas de divulgação científica para passar o tempo e dobra o paletó do visitante como
um jazzman daqueles de antigamente -pobres, mas cujas
roupas eram bem passadas.
PERGUNTA - O atual sucesso do
jazz, de que seu prêmio é um exemplo, é freqüentemente atribuído aos
popularizadores tradicionais do gênero, como o trompetista Wynton
Marsalis e o documentarista Ken
Burns -que, diga-se de passagem,
costumam contar uma história do
jazz um tanto quanto enviesada e
edulcorada...
HERBIE HANCOCK - É possível. O
que acho é que o jazz é muito
saudável para a alma humana,
algo que realmente liberta a alma. É como se o espírito não
obtivesse satisfação suficiente
com outras formas musicais,
que podem ser maravilhosas,
mas, sinceramente, não chegam até onde chega o jazz.
Todos os gêneros são válidos,
mas há algo de muito especial
neste ao qual dediquei minha
vida. É uma queda livre, e você
precisa de músicos nos quais se
apoiar. Não conheço ninguém
que faça jazz pela fama, as jóias
ou as mulheres.
PERGUNTA - Por que ocorreu tão
tardiamente o reconhecimento dessa expressão cultural mais duradoura e original dos EUA?
HANCOCK - Eu me recordo de
quando tocava com Miles [Davis], nos anos 1960. Naquela
época o jazz ainda era uma música que se tocava nos clubes,
longe dos grandes festivais.
Éramos sujeitos com classe e
fazíamos uma música que ninguém comprava. Eu tinha 20 e
poucos anos. Depois disso, o
jazz se tornou uma coisa virtuosística demais. As pessoas
comuns não assimilam algo
muito complicado.
Chegou o rock and roll, e acabou-se a história.
PERGUNTA - Aos 25 anos de idade,
você conseguia entender a importância daquela música?
HANCOCK - Curtíamos explorar,
nos aventurar em áreas onde
ninguém estivera antes. A idéia
de explorar terreno novo ainda
está muito presente para mim.
Inclusive em "River", que pode
ser considerado um álbum
mais fácil de se ouvir, ou no anterior ("Possibilities"), que foi
muito criticado por eu ter colaborado com artistas como
Christina Aguilera.
Diziam que faltava um centro ao disco, que abarcava muita coisa e se fixava em poucas,
como se isso fosse algo intrinsecamente ruim.
Para mim, é isso o que é preciso fazer neste momento. Esse
é o signo destes tempos de downloads digitais. Ninguém mais
ouve álbuns inteiros. As pessoas só se interessam por canções. Por isso fiz um disco em
que parecia que cada faixa vinha de um disco diferente.
PERGUNTA - Você sempre pareceu
ter sido do tipo íntegro e careta, o
cara que ficava longe das drogas,
que tomava as decisões certas. Uma
imagem que, naquela época, não
era típica de um jazzman...
HANCOCK - Vamos deixar claro:
não éramos anjos. E não se iluda: eu fiz algumas das coisas
que a gente fazia. Foi uma época difícil. E alguns ficaram pelo
caminho.
PERGUNTA - Era difícil conviver com
alguns deles?
HANCOCK - Sobretudo com
aqueles que se afundaram na
heroína. Muitos saíram dessa
graças ao islã.
PERGUNTA - Nunca se converteu?
HANCOCK - Nos anos 70, flertei
com o islã. Me fazia chamar
Mwanddishi, mas era mais por
solidariedade com a luta política da comunidade negra.
PERGUNTA - Quais são suas lembranças de Joni Mitchell jovem? A
loira cantora e compositora de folk
foi bem recebida quando começou a
se misturar com músicos de jazz?
HANCOCK - Muitos a trataram
com frieza num primeiro momento, porque a tinham ouvido
no rádio e não entendiam o que
ela estaria procurando entre
nós. Era uma hippie com seu
violão. Pessoalmente, não a tinha ouvido muito antes de conhecê-la. Nascer em 1940 significou fazer parte da geração
anterior ao rock and roll.
Lembro-me de que estava fazendo o disco dela, "Mingus",
quando fui a um ensaio. [O baixista] Jaco Pastorius me chamou. Eles já tinham trabalhado
juntos antes. Disse: "Tio, estamos fazendo um disco em homenagem a Charlie Mingus".
Pensei: "Por que essa garota
está se metendo nessa história?". Jaco me falou: "Wayne
Shorter está comigo". Bom, se
Wayne estava lá, nada de mau
poderia acontecer. Então fui.
PERGUNTA - Jaco Pastorius era um
daqueles sujeitos incômodos aos
quais você se referia antes?
HANCOCK - Muitos eram junkies. Jaco não era exatamente
assim. Provavelmente tomou
heroína. E cocaína também.
Mas o caso dele era mais grave. Tinha um desequilíbrio químico na cabeça. Acabou louco.
Mas, na época em que eu o conheci, era um sujeito normal.
Vivia na Flórida, tinha mulher e filhos, era um jovem marido que tocava baixo como os
anjos. Entrou para o Weather
Report, e isso foi ótimo para
seu desenvolvimento fenomenal. Faziam música estarrecedora, aclamada pela crítica e
pelas platéias de jazz.
Era um público grande para
um grupo como aquele, mas
não grande como o público de
rock. E Jaco era uma estrela de
rock, sobretudo quando subia
ao palco, mas não ganhou a
atenção que esperava. Acho
que isso minou sua personalidade frágil, até acabar com ele.
PERGUNTA - Você foi homenageado com o Grammy mais apropriado
para a era Barack Obama.
HANCOCK - Ninguém esperava
que um negro fosse candidato à
Presidência dos EUA, assim como ninguém teria apostado
que um velho músico de jazz levasse o Grammy. As duas coisas
são sinais de mudanças nos
EUA, que está precisando mesmo virar uma página.
PERGUNTA - Isso tem a ver com
questões raciais?
HANCOCK - A questão racial é
apenas uma parte do problema.
Este inclui questões como a cor
da pele, sem dúvida, mas não é
apenas isso. Também o gênero
faz parte. É um sinal positivo e
saudável. Você imaginou que
veria uma mulher candidata à
Presidência?
PERGUNTA - Nem sequer quando
Jesse Jackson esteve a ponto de ser
candidato [democrata], em 1988?
HANCOCK - Nunca pus fé nele.
Ele nunca me pareceu confiável, nem mesmo o homem adequado. Já Obama, pelo contrário, o é. Mas não pela cor de sua
pele. Tenho muitos amigos
com os quais tenho falado sobre assunto. Alguns o apóiam
porque o vêem como gente sua.
Mas outros subscrevem as
mesmas razões que eu. Obama
é o tipo correto, que está despertando a consciência de muitos eleitores jovens. É só isso.
Ninguém conseguiu isso antes.
Talvez Kennedy, apenas. Em
quem eu, é claro, votei, na época dele, quando tinha pouco
mais de 20 anos.
PERGUNTA - Antigamente o jazz
era uma coisa que deixava os pais de
cabelos em pé, mas já faz tempo que
não é assim, infelizmente. Onde foi
parar essa periculosidade?
HANCOCK - Sim, o jazz foi irado
em sua época. Nos anos 1960,
havia discos que representavam o protesto. Ainda existem
hoje, mas são poucos.
Quanto à periculosidade que
você menciona, é verdade que o
jazz pendeu para o comercial.
Se pensar bem, verá que o fato
de alguém querer vender discos
é uma intenção nobre. As rádios que transmitem jazz autêntico estão morrendo. Os
adolescentes acham o jazz limpo demais, às vezes chato.
Mas isso não é algo que se
possa atribuir a todo o campo
do jazz. Não seria justo atribuir
tantos problemas derivados do
"smooth jazz" a todos os músicos que ganham a vida como
podem nos clubes.
PERGUNTA - Por que não conseguem fazer contato com os jovens?
HANCOCK - Eu ando vendo mais
gente jovem nos concertos, graças a programas de educação e
iniciativas desse tipo. Talvez
não seja a coisa mais beatnik do
mundo, mas também não é intrinsecamente mau que se estude o jazz nas escolas.
PERGUNTA - Você é provavelmente
o artista de jazz que mais vezes deixou sua marca na cultura pop.
HANCOCK - É que, se todos nós
ficássemos sempre dentro de
nossas torres de marfim, tocando "Round Midnight" [standard do gênero] de vez em
quando, o jazz acabaria morrendo. Não se conquistariam
novos ouvintes, os músicos envelheceriam e acabariam por
desaparecer.
Qual seria o resultado de algo
assim? O jazz morreria, e não
haveria saída.
A íntegra desta entrevista saiu no "El País".
Tradução de Clara Allain.
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