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"Verger-Bastide - Dimensões de uma Amizade" reúne a colaboração
intelectual dos dois antropólogos franceses entre os anos 50 e 60
ESPELHOS DA CONTRACOLONIZAÇÃO
Verger-Bastide - Dimensões de uma Amizade
260 págs., R$ 34,00
Angela Lühning (org.). Tradução de Rejane Janovitzer. Ed. Bertrand
Brasil (r. Argentina, 171, 1º andar, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/
2585-2070).
Marcelo Coelho
Colunista da Folha
O antropólogo Roger Bastide (1898-1974) chegou ao Brasil em 1938, integrando a missão de
professores franceses que participou da fundação da Universidade de São Paulo. O fotógrafo Pierre
Verger (1902-1996) esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1940, mas só em 1946 fixou-se na Bahia, quando começou a trabalhar para a revista "O Cruzeiro".
Autores de obras fundamentais no estudo da cultura
afro-brasileira, Bastide e Verger tornaram-se grandes
amigos. Foi Roger Bastide quem primeiro recomendou
a Verger que visitasse a Bahia. Foi Pierre Verger quem,
mais tarde, guiou Bastide numa viagem à África (Benin
[antigo Daomé] e Nigéria), onde ambos pesquisaram as
raízes do candomblé brasileiro.
Os artigos que compõem esta coletânea ["Verger-Bastide - Dimensões de uma Amizade"] são o registro
da colaboração intelectual entre ambos. Ao lado de textos jornalísticos para "O Cruzeiro", escritos por Bastide
e ilustrados por fotos de Verger, há minuciosos trabalhos etnográficos ("Contribuição ao Estudo Sociológico
dos Mercados Nagôs do Baixo Daomé" e "Contribuição
ao Estudo da Adivinhação em Salvador"), em que os
dois pesquisadores atuam em pé de igualdade.
Poderíamos pensar que Roger Bastide, de formação
acadêmica, fosse o responsável pela parte mais "científica" dos textos, e que Verger, fotógrafo de profissão,
respondesse pelo lado mais "artístico" da dupla. Não é
bem assim. Lendo as reportagens de "O Cruzeiro", assinadas por Bastide, encontramos com frequência um
tom de entusiasmo e de enlevo literário, enquanto Verger se responsabiliza pela elaboração de notações e diagramas extremamente precisos a respeito, por exemplo, dos deslocamentos físicos e da disposição de objetos votivos em determinado ritual.
"Dança marítima"
Dança e trabalho se misturam
na pesca do xaréu em Amaralina, na época um bairro
distante, quase selvagem, de Salvador. Eis como Bastide
descreve a cena.
"Os negros balançam por um momento seus corpos
no mesmo lugar, um pé para o alto dançando segundo
o ritmo do canto; depois colocam-no bruscamente no
chão, curvam-se e puxam a rede num grande gesto que
segue a ordem dada pela frase musical. Os corpos se retesam para se balançar novamente, marcando com os
pés a dança marítima, depois começam a puxar a rede,
cada vez mais perto da praia, até que, por fim, atiram
sobre a areia úmida os sobressaltos dos peixes, a agonia
animal, a sinuosidade viscosa das algas."
A atmosfera de encantamento e exotismo é irresistível
para esse antropólogo, ao passo que o fotógrafo Pierre
Verger, profundo conhecedor e praticante do candomblé, é quem relata com inestimável minúcia e exemplos
concretos as técnicas de adivinhação dos babalorixás
[pais-de-santo]. O artigo destaca o uso do opelê, espécie
de rosário cujas contas, conforme são jogadas, servem
para consultas e prognósticos. Na época em que o artigo
foi escrito (1953), o opelê ia sendo rapidamente substituído pelos búzios.
De forma quase mística, podemos dizer que o mundo
da troca, do espelhamento, da influência mútua está representado em todo o livro, em vários níveis, e não apenas no que se refere à colaboração e amizade entre Verger e Bastide. Um dos primeiros textos do livro é sobre a
cidade de Abidjã, no Senegal, espécie de "duplo" africano da cidade de São Paulo. Em "A Burrinha de Uidá",
Verger e Bastide não apenas notam a influência africana
sobre o Brasil, mas a do Brasil sobre a cultura africana: o
texto descreve uma versão da festa do bumba-meu-boi
em pleno Benin, tal como foi levada por ex-escravos
brasileiros.
Cultura horizontal
Levando em conta que a
maioria dos textos foi escrita nas décadas de 1950 e 60,
quando várias nações africanas se rebelavam contra o
jugo colonial francês, não deixa de ser curioso notar a
importância que Bastide e Verger justamente dedicam
a essa espécie de "contracolonização", ou melhor, a esse
tipo de troca cultural "horizontal", entre África e Brasil,
em oposição aos choques entre europeus e africanos.
A presença de motivos muçulmanos na roupa típica
das baianas de Salvador, os reflexos das feiras nagôs nos
seus tabuleiros de quitutes ou ainda na própria história
brasileira, as semelhanças e cruzamentos entre os desfiles de Carnaval e as procissões católicas são alguns outros exemplos da presença desse "fluxo e refluxo" cultural, para lembrar o título do livro mais famoso de Verger ["Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o
Golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos dos Séculos
17 a 19", ed. Corrupio".
A despeito de reunir artigos de dimensões e propósitos desiguais (comunicações para especialistas alternam-se com reportagens leves, quase românticas), a coletânea, que conta com belas fotos de Verger, vai traçando como que redes e entrelaçamentos temáticos de um
texto a outro.
O livro parece assim encarnar aquele espírito de diálogo, aquele gosto pela aproximação entre dois temas
complementares, que era típico do estilo de Bastide, segundo diz Verger num texto sobre o amigo. Típico,
também, de toda essa bela amizade.
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