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+ história
Livro lançado nos EUA discute como as teorias eugênicas do período entre
as duas grandes guerras influenciaram as políticas públicas no Brasil da época
Em busca de uma raça nacional
Fabiano Maisonnave
da Redação
A história do pensamento brasileiro costuma reservar um capítulo à parte para o período entreguerras do século 20, quando, sob influência
das teorias racistas européias em voga, sua elite
intelectual centrou esforços para descobrir qual seria a
solução para uma ex-colônia construída em cima do
trabalho escravo africano. O livro "Diploma of Whiteness - Race and Social Policy in Brazil, 1917-1945" (Diploma de Branco - Raça e Política Social no Brasil, Duke
University Press, 293 págs., US$ 21,95), do brasilianista
porto-riquenho Jerry Dávila, 33, retomou esse conhecido debate sob uma nova perspectiva: como essas idéias,
calcadas na supremacia branca, influenciaram as políticas públicas da época?
Resultado de sua tese de doutorado na Universidade
Brown, onde esteve sob a orientação de Thomas Skidmore, a pesquisa de Dávila mostra como as teses eugênicas de supremacia branca que circulavam pela elite brasileira saíram do discurso para se transformar em políticas
públicas.
O pesquisador, entrevistado a seguir,
encontrou nomes famosos. O educador
Anísio Teixeira (1900-71), por exemplo,
transformou o sistema educacional do
Rio de Janeiro -o maior do Brasil à época- num grande laboratório para pesquisas eugênicas entre 1931 e 1935.
Já o compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) criou
para os corais escolares canções como "Regozijo de
uma Raça", que evoluía de sons primitivos supostamente africanos para uma marcha européia. Para essa
elite intelectual, o desafio era "curar" o país das heranças históricas negativas, que poderiam condenar o Brasil a continuar sendo "um grande hospital", como definiu um eugenista da época.
O sr. defende a existência de uma eugenia brasileira, que
teria moldado as políticas de educação no entreguerras.
Quais as características dessa eugenia?
Essa eugenia foi uma interpretação nacional de correntes internacionais e se baseou na idéia de que
uma "raça brasileira" poderia ser construída dentro
de algumas gerações por meio da medicina ocidental, cuidados pré e pós-natal, condicionamento físico
e educação. A eugenia acreditava que partes das populações nacionais são degeneradas. Na Alemanha
nazista ou nos EUA, os eugenistas defendiam que esses supostos degenerados tinham de ser eliminados
da população reprodutiva por meio de esterilização
ou meios ainda mais violentos. A diferença é que os
eugenistas brasileiros acreditavam que poderiam
"redimir" a população existente.
Esse é o grande paradoxo: a eugenia no Brasil levou à alocação de recursos públicos às áreas do bem-estar social, mas em um contexto que definia a maioria dos brasileiros como medicamente, psicologicamente, fisicamente ou culturalmente deficientes. Foi
uma política progressista, mas preconceituosa.
O sr. argumenta que o uso de métodos "científicos" baseados na eugenia criaram ainda mais barreiras entre os
negros e a escola. Quais são essas nova barreiras e como
elas afetaram a população negra?
Como as escolas procuravam uma "raça brasileira"
eugenicamente perfeita, eles recompensavam certas
características. Tanto alunos pobres quanto os de
cor eram regularmente classificados de deficientes
por diversas razões. Nessa base, eles eram preteridos
e colocados em salas de aula destinadas a crianças
problemáticas. Era uma forma de segregação de fato.
Encontrei casos em que crianças eram consideradas
com uma saúde excessivamente frágil para aprender
e nunca lhes era ensinado nada, o que para professores e administradores era a prova de
que eles eram incapazes de aprender.
Esse exemplo é parte de um padrão
mais amplo: à medida que as instituições educacionais trabalhavam com a
pressuposição de que as crianças de
cor eram desajustadas, os educadores
negavam oportunidades educacionais para elas, o que por sua vez limitava o desempenho escolar do estudante e reforçava estereótipos.
Na maioria dos documentos usados no livro, é muito difícil encontrar afirmações abertamente racistas ou mesmo
menções diretas à raça. Por que citações explícitas eram
tão raras entre intelectuais influenciados pelos EUA de
então, segregados e que estavam vendo a ascensão do
nazismo, cujas idéias também tiveram uma forte penetração no Brasil?
Não creio que os intelectuais e educadores desse período fossem racistas. Eles estavam tentando criar
instituições públicas e inclusivas para o Brasil. Mas
faziam isso dentro de valores que pressupunham
que pessoas de cor ou vivendo na pobreza não tinham capacidade de aprender, liderar ou de tomar
decisões adequadas. Os intelectuais desse período
eram produtos de seu tempo e, certamente, algumas
de suas crenças eram influenciadas pelo racismo nos
EUA e na Alemanha nazista. Mas eram formas distintas de preconceito.
O sr. argumenta que Anísio Teixeira transformou o sistema escolar do Rio num laboratório, com o auxílio dos
principais eugenistas brasileiros. Como foi sua administração como diretor (1931-5)?
Teixeira foi um intelectual proeminente e, como diretor de educação do Distrito Federal, tinha um
apoio considerável à sua disposição. Ele foi capaz de
atrair muitos dos principais eugenistas, entre eles
médicos, antropólogos e psicólogos envolvidos no
estudo de raça. Os eugenistas tiveram acesso a quase
100 mil alunos e suas fichas de saúde e de higiene
mental. O sistema de educação de Teixeira era o laboratório para a compreensão da natureza da degeneração e os passos para a criação da "raça brasileira". Até onde sei, o sistema escolar do Rio produziu
mais pesquisa eugênica do que qualquer outra instituição da era Vargas.
Como eram essas pesquisas?
A pesquisa era bastante ampla, variando da higiene
dental e estudos de nutrição para análises de mistura
racial entre os estudantes. O estudo mais importante
a ser publicado dessa pesquisa foi "A Criança Problema", do [antropólogo] Arthur Ramos, que examinava problemas psicológicos e culturais. Os anais
do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, organizado
em 1934 por Gilberto Freyre, mostra uma grande
participação de pesquisadores empregados por Teixeira -incluindo o biometrista Bastos d'Avila, que
apresentou resultados do "índice Lapique", que supostamente permitia determinar por meio de medidas biométricas a presença de ancestralidade negra
entre pessoas que pareciam brancas.
Por meio de análise de fotografias da época, o sr. defende que as políticas eugênicas levaram à diminuição do
número de professores negros. Como isso ocorreu?
Mostrar a presença e o desaparecimento de um
grande número de professores de cor no início do
século 20 é uma tarefa difícil devido à falta de documentos. Compreender por que isso ocorreu é mais
fácil. Com a profissionalização do ofício de ensinar,
cada vez mais os novos professores tinham de passar
pelas escolas normais. No Instituto de Educação do
Rio de Janeiro, os candidatos tinham de passar por
uma bateria de exames eugênicos, começando com
exame de saúde eliminatório e culminando com
avaliações psicológicas e de temperamento, áreas
subjetivas que eram moldadas pelo pensamento eugênico, que equiparava branquitude a saúde, modernidade e profissionalismo.
O seu livro tem poucas menções a Getúlio Vargas. Como
era sua visão com relação aos eugenistas e seus proponentes? Havia uma relação de ambiguidade, como ocorria com outros temas?
Pessoalmente, Vargas estava envolvido apenas indiretamente com essas experiências. Gustavo Capanema, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo eram
muito mais importantes. Mas Vargas é importante, a
Revolução de 1930 abriu o espaço político para a implementação de reformas educacionais, e o regime
Vargas expandiu a capacidade do Estado, permitindo a institucionalização de valores raciais eugênicos
em diversas áreas das políticas sociais.
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