São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004 |
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HISTÓRIA DA INDEPENDÊNCIA CONTADA DO PONTO DE VISTA DO RIO DE JANEIRO PROCUROU REVERENCIAR A MONARQUIA E A UNIDADE NACIONAL E SUBESTIMOU DEBATE SOBRE AUTONOMISMO NO PAÍS A pedra no sapato
A história da fundação do império é ainda hoje
uma história contada apenas do ponto de vista
do Rio de Janeiro. Ela o foi, à época, pelos publicistas que participaram do debate político da
Independência e, depois, pelos historiadores como
Varnhagen, Oliveira Lima, Tobias Monteiro ou Octavio
Tarquinio de Souza, que repristinaram a versão original, visando à maior glória da monarquia e da unidade
nacional. Como esta fosse encarada teleologicamente,
eles se limitaram a desenvolver, sem os por em causa, os
pressupostos da ideologia da corte, reduzindo a Independência à construção do Estado unitário por alguns
indivíduos dotados de acendrado patriotismo, geralmente nascidos no triângulo Rio-São Paulo-Minas.
Escusado assinalar que a historiografia da Independência tendeu a escamotear a existência desse segundo projeto, reduzindo seu escopo a impulsos anárquicos e a ambições personalistas de inspiração antipatriótica. Na América inglesa e na América espanhola, a Independência também havia girado em torno do conflito entre diferentes visões constitucionais. Nos Estados Unidos, os "Articles of Confederation", de 1776, e a Constituição de 1887 consagravam graus distintos de organização nacional, confederal no primeiro caso, federal no segundo. Na América espanhola, o feitio da disputa tinha de estar aparentado ao do Brasil. Ali a contenda se verificou entre um liberalismo inspirado no constitucionalismo espanhol (que, como se recorda, exerceu grande influência nas cortes de Lisboa), liberalismo cuja vertente autonomista triunfou passageiramente, como no Chile e no México, mas só vingou na Argentina; e a concepção autoritária de Bolívar, que descrente da capacidade das elites locais, favorecia um regime autoritário moldado nas Constituições francesas de 1799 e 1802 e que disporia de presidente e de Senado vitalício. Sob esse aspecto, Bolívar e d. Pedro estavam muito mais próximos do que podiam supor. Cabe duvidar de que o conceito de federalismo seja o que melhor convém ao autonomismo pernambucano e mesmo à experiência constitucional brasileira. A esse respeito, não havia noções precisas ao tempo da Independência, por um lado empregando-se federação como sinônimo de confederação e, por outro, de república e democracia, no objetivo "ad terrorem" de confundir o autonomismo com a democracia ou governo popular, quando se tratava de concepções distintas. Há mais de 60 anos, Lemos Brito chamou a atenção para o fato de que o grande doutrinário do autonomismo, Frei Caneca, pensava antes em termos do sistema norte-americano dos "Articles of Confederation" do que da Constituição federal de 1787, nos quais os Estados haviam preservado feixe menos amplo de poderes. Sob esse aspecto, o autonomismo pernambucano adotava posições que nos Estados Unidos haviam sido defendidas pelos adversários da Constituição em nome dos direitos dos Estados. Como demonstrou Bernard Bailyn, ao reivindicarem para a União competências em matéria de representação, tributação, dívida pública e Forças Armadas, os federalistas haviam sido acusados de serem tão perigosos para as liberdades dos colonos da América do Norte quanto, antes da Independência, a coroa e o Parlamento britânicos. A despeito de que a historiografia brasileira fale sempre de federalismo ao tratar do período regencial, tal conceito era olhado com reservas. Quando dos debates sobre o Ato Adicional, Evaristo da Veiga, entre outros, indicou tratar-se de noção estranha à formação brasileira. Como vivam em colônias separadas, dotadas de propósitos unitários da corte, a fim de desacreditar as aspirações de autogoverno provincial, o período que vai da Revolução de Dezessete à Confederação do Equador também se absteve de formular seus objetivos em termos republicanos, preferindo apresentá-los ou como sendo compatíveis com o regime monárquico implantado no Rio, desde que este fosse autenticamente liberal, ou procurando esvaziar o debate sobre a natureza da chefia do Estado brasileiro, que seria irrelevante diante da questão crucial do autogoverno provincial. Que no Norte o autonomismo primava sobre o republicanismo, José Bonifácio era o primeiro a reconhecer contra os que no Rio os identificavam abusivamente. Em discurso em que caracterizava as correntes que se manifestavam no seio da Constituinte, ele enumerou entre os adeptos da Independência: os corcundas, convertidos à causa do Brasil por temor ao liberalismo das cortes, mas que repudiavam as instituições representativas; os monárquico-constitucionais, que representavam a maioria da nação e cuja política era a dele, Andrada; os republicanos do Rio, minoria numericamente desprezível que sonhava com a república unitária; e finalmente os autonomistas, que ele intitulava "bispos sem papa", os quais, não querendo ser unitários como os monárquico-constitucionais nem "republicanos de uma só república", aspiravam a "um centro de poder nominal (na corte) e, cada Província, uma pequena república". O perigo para José Bonifácio vinha precisamente desses "incompreensíveis" que tinham seu centro nas Províncias do Norte e, em particular, em Pernambuco. Ao dissociarem o autonomismo e a república, os "bispos sem papa" se acomodariam a uma monarquia que, "pari passu", teria sido despojada dos seus atributos essenciais, tornando-se de fato uma república cujo chefe de Estado, em vez de presidente, se intitularia imperador. Não se podendo a rigor acusar o ciclo 1817-1824 de separatista, cabe duvidar de que a unidade do Brasil representasse para ele a grande prioridade, pois não estava preparado, ao contrário do Sul, para sacrificar no altar de uma entidade unitária, que abrangesse toda a América portuguesa, nem suas aspirações de autogoverno nem tampouco os princípios liberais da Revolução portuguesa, precondição do triunfo do autonomismo deste lado do Atlântico. Governo infame e vil O que Tobias Monteiro observou com razão, mas sem compreensão, a respeito de Frei Caneca poderia ser escrito dos seus correligionários autonomistas: que tampouco encaravam "na união nacional e na integridade do Brasil o problema máximo da Independência". Para eles, a liberdade provincial primava sobre a unidade do Brasil, atitude tão legítima quanto a oposta. Em 1824, Natividade Saldanha colocou de forma nítida a disjuntiva liberdade ou independência: "Antes ser livre e não ser independente do que ser independente e não ser livre. E que vantagem tiraríamos nós de tal Independência? Não estarmos sujeitos ao rei d. João 6º e aos caprichos de Subserra, (do) conde, hoje marquês, de Palmela, Salter de Mendonça e Gomes de Oliveira. Que ridícula vantagem? E não ficávamos sujeitos aos caprichos de Maciel da Costa, de Vilela Barbosa e de outros? Antes viver na escravidão de Portugal do que na do Brasil, para que se não diga que os brasileiros foram tão estúpidos que, tendo forças para separar-se da metrópole e tendo ocasião de adotar um governo livre e acomodado às suas circunstâncias, adotaram um governo infame e vil (o do império), como são todos os governos absolutos". Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.". Texto Anterior: Os terríveis simplificadores Próximo Texto: O perigo da afetação inteligente Índice |
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