São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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+ arte

O curador da mostra "Emoção Art.ficial 2.0", que acaba de ser inaugurada em São Paulo, discute aspectos da produção contemporânea em novos meios

A nova subjetividade aparelhada - Arlindo Machado

Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

Passada a voga catastrofista em relação à guinada tecnológica dos últimos anos, teóricos e artistas dedicam-se a pensar e utilizar criticamente aparatos digitais e biogenéticos. Essa é a aposta da -agora- bienal de arte tecnológica "Emoção Art.ficial", que reúne 30 obras selecionadas pelos curadores Arlindo Machado e Gilbertto Prado, com consultoria do artista e crítico Jeffrey Shaw para o segmento internacional. Arlindo Machado, que é professor da pós-graduação em comunicação e semiótica na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), concedeu entrevista ao Mais! durante a montagem da mostra que segue no Itaú Cultural (tel. 0/xx/11/3268-1776) até 19/9.
 
Como obras artísticas podem contribuir para politizar o debate acerca da pesada mediação tecnológica que perpassa a vida contemporânea?
Essa mediação tecnológica toda, todo hardware e software que é produzido industrialmente, nada disso é feito para a produção de arte. A produção de tecnologia almeja o mercado de entretenimento de massa, digamos assim, o mercado da mídia. E utilizar de uma forma ingênua essa tecnologia é, de certo modo, se dobrar a um programa que já está embutido nessas máquinas. Então a questão é como o artista pode lançar mão delas desprogramando-as ao mesmo tempo, desviando a utilização desses meios para objetivos que não estão previstos.
Eu considero essa uma das contribuições mais importantes -a forma como o artista pode trabalhar com instrumentos que foram pensados, concebidos e programados para outro tipo de utilização. É preciso fazer uma espécie de desvio, em alguns momentos até uma subversão, é preciso reinventar essas máquinas para que elas possam ter uma utilização criativa e, para isso, o artista às vezes tem que ser capaz de operar no nível da própria engenharia da máquina, intervir no próprio programa, como se fosse possível enganá-lo, fazer o programa trabalhar de um jeito diferente daquele para o qual foi criado.

Mas o sr. defende que, nessa imbricação entre arte, ciência e tecnologia, apenas a produção que subverte os meios tecnológicos é relevante?
Na exposição houve uma ênfase nesse tipo de trabalho por uma questão de recorte curatorial, mas evidentemente há um grande número de trabalhos que é de natureza poética, ou seja, existe uma nova possibilidade de poesia dentro do horizonte das novas conquistas que são colocadas pela ciência e pela tecnologia. O trabalho do Eduardo Kac, por exemplo, não é exatamente político, no sentido mais tradicional do termo. Mas é extraordinariamente poético, além de polêmico, fazer uma transformação genética em uma coelha, transferindo propriedades luminosas de uma medusa do mar para um mamífero. Além da discussão ética que pode estar envolvida nisso, o trabalho é de uma poesia inteiramente nova, que é essa possibilidade de intervir na própria vida, até como se fosse possível melhorar a natureza, no sentido de você desenvolver a natureza para além daquilo para que ela foi programada.

Isso quer dizer que há uma especificidade da arte digital?
Fazendo um retrospecto da história da arte, pode-se ver que o artista sempre trabalhou com os meios de seu tempo e, em geral, com os meios mais avançados de seu tempo. Então, por exemplo, se Bach fazia peças para cravo, não é porque ele escolheu o cravo dentro de um leque de opções que ele tinha, mas é porque o cravo era o instrumento mais avançado de seu tempo e era o instrumento que melhor exprimia a sensibilidade do homem do período barroco. E assim como Bach fazia peças para cravo, um Stockhausen faz peças para sintetizador eletrônico, quer dizer, não faz sentido que um Stockhausen vá fazer peças para cravo, a não ser a título de metalinguagem, a título de citação. O artista está sempre trabalhando com os instrumentos que ele tem; o artista do nosso tempo trabalha com computadores, com algoritmos, até com intervenções de tipo genético; é da inquietação da arte estar sempre buscando novas maneiras de dizer novas coisas.

A sensibilidade contemporânea pode então ser definida como mediada pelos novos aparatos tecnológicos?
Já no século 15, a produção criativa começa a ser intensamente mediada por aparatos, com a invenção da câmera. A partir de então, cada vez mais surge o que Edmond Couchot chama de "sujeito aparelhado", aquele que produz lançando mão de uma quantidade cada vez maior de tecnologias intermediárias entre ele e a criação. Mas é no século 19, com o surgimento da fotografia, que aparece uma questão nova; há uma máquina que produz quase automaticamente uma imagem, então surge a questão: a imagem é do fotógrafo ou é da câmera? Vilém Flusser, por exemplo, defende a idéia de que, com a automatização da produção de imagens, o artista vai se tornando de certa forma desnecessário. A máquina se impõe, não apenas realiza quase todas as etapas do processo como ainda determina certos resultados.
Então, produzir arte através dessa mediação cada vez maior implica também que o artista esteja consciente do que está fazendo, das determinações que o trabalho dele está sofrendo; ele tem que pensar até onde está criando -se é a visão de mundo dele que está sendo expressa, se é a sensibilidade dele que está tomando corpo ou se é um programa que já está determinando um resultado estabelecido a priori. Flusser dizia que todas as fotos possíveis já estão contidas dentro da câmera fotográfica, e o artista, quando aperta o botão, está apenas tirando uma das fotos que já estão ali, programadas.
Então, como é possível obter de um aparelho um resultado que não estava programado, um resultado que foge completamente à previsão de todo o sistema? Máquinas não foram inventadas para fazer arte. Por exemplo, o videocassete foi inventado para treinamento de funcionários em empresas, mas evidentemente os artistas se apropriam das máquinas e subvertem seus usos, eles começam a dar uma utilização que não estava no horizonte de quem concebeu a máquina, e, ao fazer isso, o artista amplia o leque de possibilidades desse aparato. O artista, nesse sentido, reinventa a máquina

Como fica a questão da autoria nesse contexto da produção tecnológica?
O autor é uma herança de pelo menos cinco séculos de história da arte. A autoria não esteve presente ao longo de toda a história da cultura humana, ela é datada historicamente. A mitologia não é criada por ninguém, é fruto da história de um povo. As catedrais góticas da Idade Média não estão assinadas, quem foi o arquiteto? Foi uma civilização. Acho que estamos voltando um pouco a essa indiferenciação do autor, no sentido de que o artista hoje, ao trabalhar com um programa de computador, já está dialogando com as inteligências que estão ali, toda a engenharia que está ali foi produzida por gerações e gerações de cientistas, de engenheiros, que permitiram que aquele resultado chegasse até a mão do artista.
Além disso, o artista hoje tem que dialogar com outros talentos, ele não pode dominar todas as etapas da sua criação, ele às vezes precisa de recursos de programação e tem que recorrer a um programador, ele precisa de uma modificação no hardware e precisa então de um engenheiro de hardware, então a tendência, cada vez mais, é a obra ir se tornando coletiva, isso se vê na história das artes tecnológicas: os artistas que tiveram os melhores resultados foram os que trabalharam em equipe. Nós conhecemos Nam June Paik, mas por trás dele havia um engenheiro japonês, chamado Shuya Abe, que foi na verdade quem tornou viáveis todos os recursos tecnológicos que permitiram a Paik produzir aquela iconografia extraordinária. Waldemar Cordeiro, que é o pai da arte computacional brasileira, não teria feito o que fez se não estivesse trabalhando com o físico italiano Giorgio Moscati; foi essa parceria que permitiu um salto na história da arte que teria sido muito difícil a um artista trabalhando sozinho. Nesse sentido, sim, a autoria, a assinatura, precisa ser relativizada.


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