São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002 |
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+ sociedade PEQUENA HISTÓRIA DA LÓGICA CONTEMPORÂNEA
Newton C.A. da Costa especial para a Folha
A lógica é disciplina que tem história curiosa. Sendo, como sustenta a maioria dos especialistas, criação de Aristóteles (384-322 a.C.), permaneceu praticamente imutável durante dois milênios. Pensadores como Kant (1724-1804) achavam que nada se havia feito de essencial, em lógica, depois do grande filósofo grego.
Facilmente se fará uma idéia, não obstante vaga, do abismo existente entre a visão tradicional da ciência e aquilo que os lógicos profissionais atualmente fazem, citando-se alguns dos assuntos dos quais se ocupam esses últimos: teoria geral da recursão, teoria dos modelos, álgebras cilíndricas, teorias de conjuntos não-clássicas, ultraprodutos, teoria intuicionista das sequências de livre escolha, teoria de Galois generalizada, "forcing" de Cohen e "forking" de Shelah. Para um historiador afeito ao tema, três são os traços principais da nova lógica que, como já deve ter ficado claro, transfigurou-se nos últimos 150 anos: 1) extraordinário desenvolvimento técnico; 2) aparecimento das chamadas lógicas não-clássicas, que complementam ou se afastam daquela batizada de clássica, a qual se inspira em pressupostos da tradição aristotélica, embora ampliando-a de maneira quase incrível; 3) a eclosão de variadas e numerosas aplicações, em quase todos os domínios do saber, acima de tudo em tecnologia (hoje se ministra a disciplina em escolas de engenharia e em todos os ramos do ensino da computação). Ciência nobre Há muita coisa a discutir no tocante à evolução dessa ciência. Salientemos, apenas, que ela, deixando de ser absolutamente trivial sob os ângulos técnico e matemático, converteu-se em ciência na qual se edificaram as mais profundas teorias, comparáveis às da matemática. Com efeito, tudo isso se pode confirmar considerando alguns exemplos interessantes, como os teoremas de Gödel, a teoria geral da recursão e a teoria de Galois generalizada. As indagações de [Kurt" Gödel (1906-78) enquadram-se entre as mais notáveis realizações da história da cultura, tendo repercussões em todas as manifestações do saber e mudando os próprios paradigmas da lógica e da matemática. Por seu turno, a teoria da recursão pode ser encarada como teoria abstrata das máquinas computacionais, sendo os computadores com os quais estamos acostumados produtos físicos que exemplificam as máquinas teóricas da teoria em apreço (máquinas de Turing, algoritmos de Markov, autômatos finitos etc.). Da teoria geral e abstrata podemos derivar vários resultados sobre os computadores comuns. Por curiosidade, mencionaremos uma consequência de quaisquer vírus; cada categoria de vírus requer métodos "antivirais" específicos. Uma das teorias de enorme riqueza da álgebra é a teoria de [Évariste" Galois (1811-32). Ela se refere a certas estruturas algébricas, mas hoje foi estendida para abranger os sistemas lógicos. Ela nos conduz a uma imagem unificada da lógica, inclusive das não-clássicas, e estabelece novos vínculos entre essa ciência e a matemática. Do exposto, percebe-se o caráter altamente técnico da lógica contemporânea. Um aspecto pouco entendido e apreciado relaciona-se ao surgimento, acima de tudo a partir do início do século precedente, de lógicas diferentes da chamada clássica. Presentemente, quando se fala em lógica, torna-se necessário que se explicite de qual delas estamos tratando. Transformar o paradigma Assim, exemplificando, em certas questões de matemática qualificada de construtiva, deve-se recorrer a uma lógica divergente da clássica, ou seja, à chamada lógica intuicionista; em outros contextos, como os da mecânica quântica, parece conveniente lançarmos mão de uma das lógicas denominadas quânticas. Em tópicos de química e de genética, tem-se apelado para o cálculo lamba e a lógica combinatória, que não pertencem, propriamente, à classe das modalidades clássicas em acepção estrita. Em síntese, há lógicas variadas como há geometrias distintas. É habitual conceber a criação das geometrias não-euclidianas como uma das máximas transformações de paradigma da ciência. Pois bem, dado que a lógica se mostra mais básica que a geometria na hierarquia do conhecimento, decorre que o câmbio correspondente de paradigma na ciência de Aristóteles possui significado singular. Este fato nos leva, sem dúvida, a uma renovação da própria idéia de ciência e provoca debates epistemológicos delicados. A lógica de hoje encontrou aplicações em praticamente todos os domínios do saber: em filosofia, em filosofia da ciência, em linguística, em matemática (por exemplo, utilização de teoria de modelos em álgebra), em química, em biologia, em direito, em psicologia etc. Todavia o que mais pode surpreender o não-especialista são as aplicações tecnológicas da nova lógica. Aplicações, exemplificando, da lógica "fuzzy" em engenharia, da paraconsistente em engenharia de produção e no controle de tráfego, da anotada em robótica e no reconhecimento automático de assinaturas em bancos, e da clássica em computação e programação. Outros setores nos quais essa ciência recentemente encontrou aplicações são os seguintes: sistemas especialistas para diagnóstico médico, fabricação de máquinas -por exemplo, geladeiras-, administração de empresas e teoria da computação flexível. A história evidencia e a exposição anterior, pelo menos em linhas esquemáticas, comprova que a lógica origina muito problemas filosóficos (natureza das noções lógicas, conexões entre ela e a matemática, caráter eterno ou provisório das leis lógicas, realismo nas ciências lógico-matemáticas etc.). Em virtude disso, além da lógica "tout court", existe a filosófica (filosofia da lógica), devotada à sua análise filosófica, tema de grande atualidade. O notável lógico e filósofo inglês A.N. Whitehead (1861-1947) afirmava que a lógica moderna estava para a tradicional assim como a matemática do século passado para a aritmética das tribos primitivas. Essa afirmação de Whitehead se mostra, em nossa época, como inteiramente justificável. Newton C.A. da Costa é professor no departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor de fundamentos da computação e lógica da Unip (Universidade Paulista). É autor de, entre outros, "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial). Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: Saiba + Índice |
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