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Ponto de Fuga
Antropofagia
Jorge Coli
especial para a Folha
O espetáculo "Os Solitários" reúne duas peças de Nicky
Silver, "Pterodáctilos" e "Homens Gordos de Saia". É
dirigido por Felipe Hirsch. Esteve em São Paulo e agora
estréia no teatro João Caetano do Rio. Conserva sua força dentro da encenação límpida, que garante a verossimilhança de situações as mais aberrantes e malucas. O
cerne está na família, que inventa falsos semblantes e relações frustradas -há algo nisto de Tenessee Williams.
Mas seria um Tenessee Williams que tivesse tomado
ácido ou entrasse em surto surrealista. Tudo derrapa e
os desejos, os ódios, os ressentimentos se vestem de absurdo, sem cair para o símbolo grosseiro. Nas situações
brutais e grotescas se infiltra uma violência maior pela
finura do diálogo irônico, pela direção precisa e poética,
pela qualidade dos atores.
Nos papéis principais estão Marieta Severo e Marco
Nanini: dois monstros de cena, está claro, mas que em
nenhum momento cedem à suficiência, à cabotinagem.
Entram em sintonia com os mais jovens, todos excelentes. Essa interação é necessária, pois o espetáculo superpõe à farsa e à crueldade uma vibração de pavor frio e
fundo. Por exemplo, mãe e filho, que aprenderam o canibalismo numa ilha deserta, ao voltarem para a civilização, devoram o macho da casa, pai e marido. A cena
se presta à risada grossa e ao Grand Guignol [gênero
teatral francês de horror"; o menino declara que aquilo
vale por anos de terapia. Mas são antes o isolamento de
cada um, os pactos sórdidos e doentios, que assustam.
Podem-se chamar as duas peças de comédia; o que elas
suscitam de fato são medos contagiantes.
Voltagem - "Ma perchè sento rizzarmi il crine?" "Mas
por que sinto arrepiar-me o cabelo?" Com essa pergunta, logo no começo da ópera, o personagem de Macbeth, recriado em sons por Verdi, dá o tom. A música
que se põe a serviço da tragédia deve abalar os nervos
do espectador, carregando a atmosfera de eletricidade.
Do recitativo conciso às grandes árias, duetos, ou corais, do início ao fim tudo se encadeia numa efervescência violenta. Em "Macbeth", de Verdi, é o mundo todo
que treme, vítima dos crimes cometidos pela ambição
sem limites.
Nem sempre, porém, as representações correspondem ao gênio do compositor. Um espetáculo de ópera
pode ser às vezes céu, às vezes inferno. "Macbeth",
apresentada há pouco no teatro Municipal de São Paulo, foi um purgatório. Toda a tensão concebida por Verdi estava ausente. Cenários mínimos, pobres de imaginação; direção de cena indiferente; regência do maestro
Ira Levin rotineira e pouco inspirada: o espetáculo trotou direitinho para o final, sem desastres, mas sem interesse. O barítono finlandês Juha Uusitalo com uma bela voz, clara e bem colocada, revelou-se imaturo demais
para o papel do usurpador escocês. Eduardo Itaborahy,
tenor, e Luiz Otávio Queiroz, baixo, ambos brasileiros,
em partes menores, fizeram sucesso; excelente o Coral
Lírico, em grande forma.
Exagero - Verdi escreveu que queria, para sua Lady
Macbeth, uma voz "aspra, soffocata, cupa" -áspera,
sufocada, escura. Que não servia a perfeição do canto;
melhor seria se ela "não cantasse". A americana Gail
Gilmore, tal como se apresentou em São Paulo nesse
papel, foi muito, muito além do que Verdi podia jamais
ter desejado.
Escolha - A discografia de "Macbeth" inscreve a única
interpretação de Maria Callas, captada ao vivo no teatro
alla Scala, de Milão, em 1951. Ela encarnou a "presença
trágica do mal", no dizer de um crítico que assistiu
àquela representação. Porém, apesar da histórica regência de De Sabata, o resto da distribuição não faz justiça à grande cantora. Há ainda belas versões sob as batutas de Muti, de Abbado, de Sinopoli. Eletrizante acima de todas, aquela gravada em 1959, com direção musical de Leinsdorf e com uma diabólica Leonie Rysaneck. Sobretudo, Leonard Warren encabeça o elenco:
nunca nenhum outro barítono atingiu sua complexidade interpretativa. É o mais estupendo Macbeth que o
disco registrou.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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