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Partindo da discussão sobre hábitos alimentares, "A Vida dos Animais",
de J.M. Coetzee, explora os limites da dignidade humana
A INDIGESTÃO DA ÉTICA
Cristovão Tezza
especial para a Folha
A literatura do sul-africano J.M.
Coetzee, que, sem muito alarde,
vem sendo editada no Brasil já
há alguns anos -os romances
"Desonra" (Companhia das Letras),
"Dostoiévski - O Mestre de São Petersburgo" (Best Seller), entre outros-, pode nos dar alguma medida do que de
mais refinado existe na literatura contemporânea. Coetzee explora ao máximo aquela faixa estreita que restou à linguagem do romance como o espaço por
excelência da relação entre ética e estética na interpretação ficcional do mundo,
um espaço que talvez não possa ser
preenchido com a mesma força por nenhuma outra linguagem.
Coetzee é um pessimista visceral, mas
sem ênfase. Em seus livros, a investigação sobre a miséria, a dor e a solidão humanas -que lembra o olhar impiedoso
do inglês William Golding (1911-1993),
de "O Senhor das Moscas"- é menos o
resultado cerebral de uma visão de mundo fria, derivada da razão, e mais uma
sensação quase que silenciosa, mesmo
discreta, dos limites sempre rotos da dignidade humana.
E há nele, contrabalançando o conforto civilizatório do ponto de vista do Primeiro Mundo, a realidade estúpida da
África do Sul de sua formação (ele nasceu em 1940) -pode-se dizer que a brutalidade lógica do apartheid, configurada pela abstração do Estado e absorvida
no cotidiano das pessoas, deu a Coetzee a
dimensão de sua literatura, mesmo
quando o seu tema não está na África.
Como se a África do Sul tivesse simplesmente regulamentado e despersonalizado, para uma eficácia indolor, algum sonho universal de segregação que bate no
coração dos homens.
Em "A Vida dos Animais", lançado
agora no Brasil pela Companhia das Letras, esse mesmo universo está presente,
mas num texto de perspectiva completamente distinta. Trata-se de duas palestras que Coetzee -ele mesmo professor
de literatura na Cidade do Cabo- apresentou na Universidade Princeton: "Os
Filósofos e os Animais" e "Os Poetas e os
Animais".
As conferências vêm acompanhadas
de uma introdução e de mais quatro curtas reflexões acadêmicas de especialistas
comentando os textos de Coetzee. O tema genérico das palestras é a relação entre os homens e os animais, acentuando-se o ponto de vista de que a morte dos
animais para a alimentação humana é
um crime ético.
Tudo parece indicar que o texto de
Coetzee, aliás um vegetariano convicto, é
mais um libelo monótono dos messiânicos prontos a afirmarem a própria grandeza e o caminho da salvação diante da
miséria alheia. Previsivelmente, as conferências afirmam a desconfiança do mundo da razão e da cultura, que afinal justificam a matança sistemática dos animais; o problema dessa desconfiança está no fato de que, extraída a razão, por limitação ou incompetência, acabamos
por não saber nas mãos de quem ou de
que ficará o reconhecimento do mundo
"justo". Da religião? Da pura intuição?
Negação da autoridade
Acontece que Coetzee tem um recurso extraordinário para escapar dessa armadilha acadêmica, recusando-se a se colocar diretamente no papel de conferencista e negando a própria autoridade para decidir
a questão.
Ele faz isso ficcionalizando a palestra;
cria uma velha conferencista, Elizabeth
Costello, como ele romancista famosa,
que é convidada por uma universidade
imaginária para falar sobre literatura,
mas que prefere falar sobre a matança
dos animais. Fica hospedada na casa de
um filho com quem tem problemas de
relacionamento e de uma nora que a detesta, e é por meio desses pontos de vista
que entramos em contato com a teimosa
conferencista. Assim, todo o discurso de
Elizabeth (descrita pelo filho como uma mulher
chata, no mínimo incômoda) passa a ser ficcionalmente refratado.
É justo nessa dimensão
que a questão ética ganha
o seu verdadeiro relevo, o
fato de que a ética (como
de resto todo o universo
dos valores que nos guiam) só pode ser
considerada no território comum entre
as pessoas, e não como afirmação isolada
de uma autoridade "pensante". Não se
trata de relativismo (isto é, todas as opiniões seriam iguais se todas as pessoas
são iguais), porque Elizabeth afirma plenamente seus pontos de vista e os defende com firmeza contra outras opiniões;
acontece que, como na vida, nosso acesso a esses pontos de vista se faz pelos
olhares alheios que lhe dão sentido e referência.
Enfim, não podemos
desconsiderar o lugar de
onde estamos para avaliar
Elizabeth.
Assim, o que parece
apenas um recurso literário "pós-moderno", como sugere a reflexão de
Marjorie Garber incluída
no volume, o que reduziria a questão a um mero distanciamento
e não-comprometimento de Coetzee
com o problema que levanta, passa a ser
a afirmação da prosa romanesca como
um caminho possível de reconhecimento do mundo que assume a impossibilidade de uma última palavra.
Isto é, num mundo em que Deus não
pode ser tomado como pressuposto e em
que a razão não pode ser considerada em
abstrato (porque os homens não vivem
em abstrato), toda afirmação ganha a incerta estatura humana.
Métodos de Treblinka
Nesse plano, cada palavra encontra sua contrapalavra; por exemplo, a comparação de Elizabeth da matança dos animais com os
métodos de Treblinka ("uma empresa
metafísica dedicada a nada além da morte e da destruição") é rebatida com simplicidade pelo poeta Abraham Stern, que
por um bilhete se recusa a almoçar com
ela ("essa inversão insulta a memória dos
mortos"; "a senhora disse que é velha demais para perder tempo com frivolidades. O mesmo vale para mim").
A tensão ficcional que povoa a curta
narrativa de Coetzee nada tem da frieza
técnica de uma conferência. Assim, mesmo os carnívoros inveterados (como o
resenhista) encontrarão no texto um belo exercício de sensibilidade e inteligência para pensar nossos hábitos alimentares, colocando em foco não as idéias, mas as pessoas.
E o livro é enriquecido por reflexões
que dão o contraponto acadêmico ou
científico à fábula de Coetzee. A melhor é
a de Peter Singer, que mimetiza o método de Coetzee para melhor entendê-lo; e
a mais fraca, a de Barbara Smuts, cuja rica experiência de antropóloga com babuínos infelizmente se reduz no livro a
uma defesa da convivência pessoal entre
homens e animais, entregando-se a um
sentimentalismo que passa muito longe
da discussão proposta por Coetzee.
Cristovão Tezza é escritor, autor de "Breve Espaço entre Cor e Sombra" (Rocco), entre outros, e
professor do departamento de linguística da Universidade Federal do Paraná.
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