São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002 |
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Entre a crônica e o ensaio, "Microcosmos", do italiano Claudio Magris, cria a imagem de uma época e de um mundo em movimento Meticulosa melancolia em um café
Kathrin Rosenfield
Não é casual que um escritor
"mitteleuropeu" comece, num
café, seu romance -ou seria
esse "Microcosmos" um caleidoscópio de recordações, uma travessia
ensaístico-poética do tempo, do espaço e
da "terra estranha" da alma? De Viena a
Praga, de Budapeste a Trieste, o café é
um espaço nevrálgico, ponto de encontro da vida política e da sociabilidade cotidiana com o imaginário exuberante
dos artistas, dos escritores e jornalistas. É
como matriz literária que nos é apresentado o café São Marcos, ilha da imaginação em todos os seus dégradés de criatividade e fracasso, cujos protagonistas
-admiráveis, sim, sob muitos pontos de
vista- participam, sob outros aspectos,
da temível tirania da superfetação imaginária.
Com imparcial placidez, Magris apresenta a exuberância criativa na instável
lógica da vida, para a qual um feto pode
também ser um câncer.
Claudio Magris escreve a partir e em
torno de Trieste, umbigo da "Mitteleuropa", faceta íntima da Europa Central. Sua
escritura não é determinada por um espaço geográfico, econômico ou político,
mas surge de um espaço criado por uma
certa literatura, por um pensamento e
um imaginário que transcendem as
fronteiras nacionais e étnicas, políticas e
religiosas.
Uma delas é a dos operários italianos de Monfalcone, que, depois da Segunda Guerra Mundial, mudaram-se com suas famílias para a Iugoslávia com o intuito de construir o socialismo no país que os liberara do nazifascismo. Em 1948, permaneceram fiéis à URSS e a Stálin contra Tito, tornando-se, assim, vítimas da perseguição anti-stalinista e, em seguida, suspeitos para todas as facções. Os que retornaram finalmente à Itália descobriram que não mais pertenciam a nenhum país, a nenhuma comunidade, a nenhuma idéia: "Ai se, quando a fé no "deus que falhou" cai, com ela desaparecer a qualidade humana -a dedicação a um valor suprapessoal, a fidelidade, a coragem..." (pág. 170). Essas lembranças do passado mais ou menos recente inscrevem-se no palimpsesto do mito de Medéia, longamente recordado nas primeiras páginas de "Microcosmos". Na "demoníaca transparência do horror" desse topos constante da literatura universal revela-se, para Magris, "uma terrível dificuldade de entendimento entre civilizações diferentes; uma severa advertência, tragicamente atual, sobre quanto é difícil para um estrangeiro deixar realmente de sê-lo para os outros" (pág. 70). Mesclando o sóbrio registro do cronista com reflexões ensaísticas e momentos de grande intensidade poética, a prosa de "Microcosmos" adquire algo da doce e "meticulosa melancolia" de Kafka. É curioso segui-la nas suas labirínticas evoluções, onde encontramos, no lugar de pomposos princípios éticos ou idéias grandiloquentes, somente jóias raras: "Pequenas questões de grande relevância" que Musil admirava nas primeiras novelas de Kafka. O que espanta é a naturalidade com que Magris faz sua uma qualidade dos seus escritores de referência (Cervantes, Goethe, Musil, Dostoiévski, Rosa): ele sabe apanhar o incomensurável em gestos ou acontecimentos singelos. A textura deste relato lembra a imagem do musgo numa novela de Musil: "Tonka enfiou os dedos no musgo; mas logo os caules voltaram a se endireitar, um após outro, e depois de algum tempo não havia nem sinal da mão que pousara ali. [Sentia-se", naquele instante, que a natureza é um amálgama de coisas feias e insignificantes que vivem tão melancolicamente separadas umas das outras como estrelas na noite". Magris nos dá a certeza de que é impossível conhecer e dominar, ordenar e controlar esse conjunto de minúcias e acasos. Mesmo assim, é nesse cosmos que acontece -feito milagre- a felicidade. Kathrin Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de, entre outros, "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM). Microcosmos 256 págs., R$ 33,50 de Claudio Magris. Trad. Roberta Barni. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/ 2507-2000). Texto Anterior: A corrosão do hábito Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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