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+ literatura
Por trás da pretensão à beleza e à verdade universais, poesia de Olavo Bilac oculta a marca de classe da elite carioca da belle époque
O PaSSo eM FaLSo Do ARTiFÍCiO
Ivan Teixeira
especial para a Folha
Como se sabe, em 1913, Olavo Bilac foi considerado o maior poeta
vivo do Brasil. Além da aclamação popular, contou com o voto
explícito de grandes artistas, poetas, críticos, jornalistas e intelectuais do período. Hoje, pode-se dizer que sua poesia
oscila entre o apreço de leitores que ainda não incorporaram a renovação modernista e a recusa de estudiosos que ainda não se libertaram do padrão modernista. Já é tempo de pensar numa terceira
hipótese de leitura.
Dentre as sugestões que Bilac extraiu
dos poetas do "Parnasse Contemporain" (1866-76) para criar uma situação
poética adequada ao Brasil de seu tempo, destaca-se o princípio da objetividade construtiva, que implica a idéia de
que a poesia resulta antes do esforço de
composição do que da inspiração, esforço que pressupõe a sabedoria linguístico-social de ajustar o código francês ao horizonte de expectativas do leitor do final do Segundo Reinado e da
Primeira República.
Trata-se, enfim, de um poeta de aguda consciência retórica, o que lhe permitiu programar efeitos em vez de expressar sentimentos desde que parecesse o contrário, como se observa no soneto "A Um Artista" [leia na página ao
lado", de "Tarde", editado em 1919, logo
após a morte do autor.
O soneto funda-se no conceito paradoxal da arte como artifício que deve parecer espontâneo. Essa é a dinâmica inerente ao princípio retórico de que a beleza, sendo o objeto da arte, não passa de
efeito produzido por elocução eficiente.
No primeiro terceto, o poeta desnuda o
princípio, afirmando que a função do artista consiste em provocar efeitos agradáveis, em produzir a sensação de beleza,
que só se realiza quando o artifício é percebido como natural. Logo, o esforço
técnico da enunciação não pode deixar
marcas no enunciado. Em outros termos, a elocução eficiente ("arte pura")
seria aquela que arrebata o leitor do plano técnico para o domínio da natureza,
em que beleza e verdade se relacionam
em harmoniosa hierarquia.
Repare-se, todavia, que a verdade bilaquiana não se confunde com as essências
platônicas e que o conceito de natureza
expresso no soneto não passa de argumento retórico para legitimar suas asserções conceituais. Entendida como efeito
de efeito, a sua é, antes, uma verdade de
classe, produzida por discursos que, sendo culturais, se apresentam como naturais (afinal, não será essa a estrutura de
todas as verdades?). Assim, o poema
pressupõe duas espécies de arte: uma
que consegue ocultar os artifícios ("andaimes"), tornando-se inimiga deles; e
outra que, sem conseguir ocultá-los, torna-se escrava deles, pois, ao invés de produzir impressão de naturalidade, revela
o esforço gasto no trabalho.
Horizonte de expectativa
A tópica desenvolvida no soneto costuma ser
interpretada como síntese do ideal da arte pela arte, assumido como típico do
parnasianismo. O ensaio prefere entendê-la como retomada do pressuposto
clássico de que, em poesia, o domínio da
técnica deve sobrepor-se ao mito do saber espontâneo, posto em moda pelo romantismo e radicalmente combatido
por Olavo Bilac e por seus companheiros
de geração. Pela perspectiva neoclássica
do parnasianismo, sem beleza não há
verdade, assim como sem forma não há
poema.
Ao afirmar, em "Profissão de Fé", manifesto que abre o volume "Poesias"
(1888), que o poeta deve servir à "Forma e ao Estilo", Olavo Bilac já propunha a beleza como finalidade da poesia.
Tanto neste soneto quanto naquele manifesto, a beleza ideal revela-se em dimensão plástica, corporificada em objetos tangíveis (escultura, jóia, porcelana, edifício), a despeito de sua natureza
verbal. Resultante da apropriação escravista, católica e burguesa de aspectos
aparentes da Grécia Antiga, o ideal de
beleza parnasiano não deixa, portanto,
de mimetizar o padrão de elegância da
elite pensante do Rio de Janeiro, de onde se alastra por todo o Brasil letrado.
Assim, o conceito de beleza parnasiano não é tão "abstrato" quanto parece,
pois se classifica como resultado de técnica discursiva, e não como essência, objetivando-se com o propósito específico
de atender a um horizonte de expectativas socialmente bem definido. A poética
cultural que estabelece esse padrão de
beleza é, em sua feição mais característica, a mesma que, por exemplo, não conseguia enxergar perversão inerente, digamos, na exclusão social dos negros recém-saídos da escravidão. Nesse sentido,
seria antes uma poética sofística do que
platônica, já que prefere o contingente ao
essencial, a convicção à verdade, embora
ostente o contrário.
Assim, sem se separar de uma noção
funcional de verdade (as verdades, enfim, não serão sempre funcionais?), a
idéia de beleza confunde-se com o domínio de um saber técnico, que é exaltado
no poema como fator distintivo da vida
em sociedade. Tal elogio da técnica -a
técnica de obter o belo e, portanto, de
propagar o bem e a verdade- acabou
por reunir em torno de si a maior parte
dos artistas, dos intelectuais e dos leitores da sociedade brasileira da época.
Em sentido restrito, o elogio da técnica
manifesta-se tanto na idéia de domínio
da retórica em geral quanto no domínio
da língua portuguesa em particular.
Desse modo, o ideal de perfeição artística abandona, na ação cultural da
poesia, a esfera do belo absoluto para
privilegiar valores relativos da vida social: domine os meios e terás os fins
-eis um dos sentidos possíveis do soneto.
Esse era, de fato, um dos componentes do discurso progressista e civilizador da cultura carioca da belle époque, que se configura com tanta eloquência
nas revistas ilustradas do período (profusão de cores e vinhetas), das quais Olavo Bilac era contínuo colaborador: "Cosmos", "Careta", "Fon-Fon" e outras.
Língua, arte, deleite
Apesar de esquecida atualmente, outra fonte básica
do pensamento poético de Olavo Bilac é
o "Tratado de Metrificação" (1910), em
cujas páginas também se confirma o
princípio da objetividade construtiva, do
qual decorre o conceito de beleza como
efeito retórico, que implica o elogio ao
domínio técnico do saber especializado
como prática social desejável.
Há, nesse livro, a defesa de uma das
principais convicções da teoria e prática
bilaquianas, que é o alargamento dos horizontes da poesia mediante o estudo do
vernáculo e a leitura dos clássicos: "Deve
o poeta estudar com afinco a sua língua,
conhecer-lhe as origens, a filiação, ler o
maior número de clássicos autorizados,
para depois se arriscar à arte difícil do
verso, de todas as artes a mais difícil. Só
depois de tudo esmiuçado, recolhido, registrado e analisado, pode escrever. Sem
grande cópia de vocábulos sempre será
falha a enunciação do pensamento. A
língua em primeiro lugar, depois a arte,
que trará o deleite e a vitória".
Como se vê, o texto desenvolve a mesma tópica do poeta entregue ao paciente
trabalho de escrever, com uma importante diferença: no soneto, é caracterizado por um misto de devoção religiosa e
obstinação profana; aqui, caracteriza-se
unicamente pelo espírito cívico do conhecimento sistemático. Genericamente, portanto, a passagem contém uma recomendação ao estudo e à disciplina,
que se particulariza na necessidade de
um saber específico (a língua portuguesa), que servirá de base a outro saber
mais específico ainda (a poesia).
Origem neoclássica
Fundado em noção corrente desde Aristóteles e Quintiliano, o texto supõe, ainda, dois usos da língua: o uso correto e apenas suficiente
às necessidades básicas da comunicação;
e o uso artístico, que, além de comunicar
o pensamento, procura impressionar o
leitor, causando-lhe admiração e espanto, por meio da aplicação conveniente
dos tropos e figuras. Em termos mais específicos, o emprego poético da língua
("a mais difícil das artes") seria aquele
que logra produzir no leitor a paixão ou
afeto idealizado pelo poeta, processo em
que a natureza se mistura com a cultura
por meio da imitação artística, no sentido aristotélico.
Se a tese proposta for aceitável, a essa
altura já se terá demonstrado a origem
neoclássica da doutrina bilaquiana, aqui
entendida como correlato do que acima
se chamou de objetividade construtiva.
Mas há outro texto de Bilac talvez ainda
mais adequado à demonstração dessa
idéia. Trata-se de um elogio a Alberto de
Oliveira, proferido em 1917 e publicado
postumamente em "Últimas Conferências e Discursos" (1924).
Nele, o poeta reconstitui a batalha conceitual de sua geração contra os últimos
românticos e recusa a hipótese crítica,
criada por estes, de que os integrantes do
"Parnasse Contemporain", entre os
quais se contava Mallarmé, tivessem
proposto a teoria da poesia impassível,
que se esgotasse no culto da forma pela
forma, afirmando que os mestres franceses "quiseram apenas lembrar que, em
matéria de arte, não se compreende um
artista sem arte; que, sem palavras precisas, não há idéias vivas; que, sem locução
perfeita, não há perfeita comunicação de
sentimento; e que não pode haver simplicidade artística sem trabalho, e mestria sem estudo".
O texto apropria-se do princípio recorrente nas retóricas da tradição greco-romana de que a elocução perfeita resulta
da confluência de três elementos: Arte +
Natureza + Estudo. Na fórmula, "Arte e
Natureza" querem dizer, respectivamente, técnica (domínio da língua e da retórica) e engenho (capacidade espontânea
devida a configurações do organismo),
assim como "Estudo" equivale ao exercício despendido pelo escritor no desenvolvimento e integração dos elementos
antecedentes.
Embora unidas na elocução eficiente,
arte e natureza não se confundiam na
doutrina antiga. Bilac, ao contrário, ratifica a idéia do artifício natural, procurando legitimar a técnica por meio de
sua integração com a natureza, o que é,
enfim, uma maneira de ocultar os meios
("andaimes do edifício") pelos quais se
obtêm os efeitos desejados. Esses são os
argumentos com que o texto ajuíza que,
em arte (técnica + engenho), a vivacidade resulta da precisão vocabular; e o sentimento, da perfeição elocutiva. Padre
Antônio Vieira (1608-97) também, ao
tratar da clareza necessária ao estilo do
púlpito no "Sermão da Sexagésima", reivindica para a eloquência de seu tempo
uma arte que se aproximasse da natureza, sugerindo que, pelo estudo, se produzisse "uma arte sem arte".
Ivan Teixeira é professor de literatura brasileira
na Escola de Comunicação e Artes da USP, autor
de, entre outros, "Mecenato Pombalino e Poesia
Neoclássica" (Edusp).
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