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Ponto de fuga
Nada na lente, tudo no olho
Jorge Coli
Jean-Luc Godard, numa recente entrevista para o jornal
"Libération", diz assim: "Hoje a crítica (de cinema) fornece o símbolo, o prestígio e comenta a atualidade do
"box-office". Ela não sabe dizer que tudo, no filme de Renoir, passa pela câmera, e, no último Altman, nada. Não
é uma questão de talento, mas de contexto social. Faz-se
o que pede o jornal". Essas frases contêm uma atitude
que caracteriza bastante Godard em suas declarações e
filmes. É uma espécie de cumplicidade alusiva: o autor
lança algumas imagens, literárias ou visuais, meio obscuras ou mesmo bastante obscuras, esperando que uma
intuição conivente surja do leitor ou do espectador.
Pressupostos silenciosos, eles podem fecundar-se de
rara poesia: basta rever "Acossado" ("A Bout de Souffle", 1959) para sentir como funciona esse envolvimento
que une espectador e filme sob uma espécie de neblina
imaterial.
Outras vezes, o jogo tende a simplificar relações e a
piscadela perde o encanto para ganhar uma compreensão de superioridade mútua. Ela significa um jogo no
qual os parceiros afirmam-se solidários para existirem
como superiores. A crítica não sabe que tudo no filme
de Renoir passa pela câmara e no de Altman, nada. É difícil destrinchar o que esta frase quer exatamente dizer e
nem vale a pena epilogar muito. Ela sublinha a superioridade de Renoir sobre Altman, mas, sobretudo, dá
uma impressão de falsa profundidade que conforta o
leitor incauto.
Isso ocorre também em filmes de Godard, desde
"Tempo de Guerra" ("Les Carabiniers", 1963), onde o
apólogo irônico plana, muitas vezes, em superfície.
Cassandras - Comparar "Assassinato em Gosford
Park" e "Elogio do Amor", os últimos filmes de Altman
e Godard, pode parecer sem sentido, tanto eles são diferentes. Os dois diretores sempre criticaram o cinema de
Hollywood, defendendo uma feitura marcada pela criação pessoal. Mas, enquanto "Elogio do Amor" fala da
memória como resistência, numa sofisticação melancólica e admirável, constatando que só no passado encontravam-se valores verdadeiros, o septuagenário diretor de "Gosford Park" oferece uma lição de energia,
renovando as verdades nas quais acredita.
Musas - A Bienal de São Paulo, como se sabe, fez 50
anos. Ela se apresenta, em 2002, muito sóbria, bem-comportada, um pouco cansada, talvez. Percorrer a
atual exposição do Ibirapuera é como tomar chá com
senhoras bem-educadas. Algumas podem ser inteligentes e interessantes, mas o próprio princípio do chá ao
cair da tarde esvazia qualquer entusiasmo.
Pode-se ver razoavelmente bem a mostra em uma
única e tranquila visita, que não é muito cansativa; pode-se encantar-se com tal ou qual obra; rir levemente
aqui e ali; perceber que o tema da metrópole é cômodo:
ao mesmo tempo em que parece assinalar um sentido
geral, permite incluir tudo e qualquer coisa. Vai-se embora. Ficam, soltas, algumas lembranças: "A Mesa e
Meus Pertences", de Nelson Leirner, o labirinto transparente de Fajardo, as fotografias de Wesely, a maquete
de Weinfeld e Kogan, mais alguns outros.
De resto, se não é estimulante, o conjunto não é desagradável. A inteligência vem substituída por uma espécie de ordenação compassada. Isto não impede, nos catálogos, que a crítica teça interpretações por tramas
muito complicadas sobre intermináveis lugares-comuns. Tudo muito respeitosamente, como se deve,
num chá das cinco.
Bússola - Diante de um quadro de Meissonier (1815-91), que eram pequenos e minuciosos, o público de 1870
tinha um critério preciso, pois nessas miniaturas era representado até o último botão. A exatidão oferecia segurança num período de crise dos juízos artísticos. Hoje, a qualidade de uma exposição é medida pelo número
de frequentadores, por sinal fortemente arrimado nas
visitas escolares. É também um critério objetivo e externo. As mesmas estatísticas que servem para o Salão do
Automóvel aplicam-se à criação artística. Não é ruim
pintar botões com exatidão; só isto, no entanto, não
basta, quando se trata de arte.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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