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CLÁSSICO DA HISTORIOGRAFIA LATINO-AMERICANA, "AS CIDADES E AS IDÉIAS", DE JOSÉ LUIS ROMERO, DEFENDE QUE AS FORMAÇÕES URBANAS HISPÂNICAS FORAM PLANEJADAS NÃO PARA IMPEDIR REVOLTAS, MAS PARA COIBIR A MESTIÇAGEM
MISTURA FINA
Francisco Alambert
especial para a Folha
José Luis Romero é um historiador argentino que o Brasil não pode se negar
a conhecer. E "América Latina - As Cidades e as Idéias" é certamente o mais
significativo de seus trabalhos para iniciar
essa aproximação necessária. Nascido em
Buenos Aires em 1909, lutador de boxe na
juventude, carpinteiro e "paisagista" a vida
toda, Romero fez parte de uma geração intelectual decisiva do modernismo intelectual argentino. Apaixonado no início pelas
artes, editou em 1929 uma revista cultural
chamada "Clave de Sol", juntamente com
o grande fotógrafo Horacio Coppola e com
Jorge Romero Brest, o mais importante
crítico de arte da Argentina.
Radical e socialista, teve freqüentes conflitos com a direita e a esquerda peronistas,
o que lhe dificultou a carreira universitária,
que exerceu tanto na Argentina quanto no
Uruguai. Romero foi parte de um importante momento em que a modernização
desenvolvimentista e o radicalismo político e cultural andaram de mãos dadas. Tanto uma coisa como outra marcam decisivamente este livro.
"América Latina - As Cidades e as Idéias"
foi seu último trabalho. Imenso ensaio historiográfico (gênero que entre nós é desprezado pelo tecnicismo universitário), escrito sem notas de rodapé, pode ser lido
como seu derradeiro (senão maior) esforço de compreensão da América Latina como exceção e regra do mundo moderno, a
partir da constituição da vida urbana e de
seu contingente ideológico.
A trajetória do livro é tão espetacular
quanto suas pretensões. A primeira edição
surgiu em 1976, apenas dois meses depois
do terrível golpe militar que vitimou também sua editora, a Siglo Veintiuno, que foi
fechada. Em setembro do mesmo ano,
aparece uma segundo edição, agora no
México, mas em março de 1977 Romero
morre subitamente, aos 68 anos, em Tóquio. Foi preciso o apoio de historiadores
do porte de Richard Morse, Tulio Halperin
Donghi, Angel Rama ou Leopoldo Zea para que a obra saísse do ostracismo, fosse
editada na Colômbia, na Itália, nos EUA
para agora chegar ao Brasil com uma ótima introdução do saudoso historiador carioca Afonso Marques dos Santos, uma
outra do filho de José Luis, o também grande historiador Luis Alberto Romero, e uma
bela tradução de Bella Josef. É de lamentar
apenas que num livro tão grande, sem notas ou bibliografia, não conste um índice
onomástico ou de assuntos.
Para Romero "cidade" significava sociedades urbanas em processo de criação. Este livro procura demonstrar que, por meio
da história comparada dos processos urbanos latino-americanos, se pode deduzir
e esclarecer a história não apenas local,
mas da "sociedade global", tanto em sua
imagem central quanto na construção de
sua imagem periférica. Na cidade, formas
de vida e de mentalidade são elaboradas,
criando uma verdadeira "ideologia urbana" que será decisiva para a construção de
formas sociais e culturais, lugar onde o cotidiano e o universal se reinventam.
Cinco tipos
Romero classifica os modelos históricos das cidades latino-americanas em cinco tipos que se sucedem: as cidades fidalgas; as cidades "criollas"; as cidades patrícias; as cidades burguesas e, finalmente, as cidades massificadas típicas
do século 20.
Essas estruturas se organizam sucessivamente em razão da classe social dominante: primeiro, os fidalgos (os donos de terras) tentam, na cidade, imitar ao máximo a
vida da corte do colonizador. Sobretudo na
América hispânica, a cidade se desenvolve
em razão do comércio que gera as elites governantes da época dos processos de independência e, depois, a partir da segunda
metade do século 19, das novas burguesias
integradas e dependentes do capital internacional da época da industrialização.
As bases teóricas do historiador argentino são sobretudo alemãs. Seus autores diletos, antes de Marx e Weber, foram Windelband, Rickert, Croce e Dilthey. Creio
que essa base "culturalista" e historicista
permite que o aproximemos de Sérgio
Buarque de Holanda, formado na mesma
tradição e com quem Romero guarda estimulantes similaridades. Como se sabe,
Sérgio Buarque, em passagem famosa de
"Raízes do Brasil", faz uma tipologia das
cidades latino-americanas, contrapondo o
racionalismo das cidades hispânicas ao
caos "barroco" das cidades luso-brasileiras. A cidade hispânica era fundada sobre
um conjunto ferrenho de prescrições que
tinham como fundamento a crença na previsibilidade e na defesa.
Para Romero, isso era uma herança que
os colonizadores espanhóis traziam da experiência de choque com os muçulmanos
na península ibérica. Do ponto de vista cultural, isso se traduziu em medo. Um medo
terrível da possibilidade da mestiçagem e
da aculturação.
Cidade racional
Assim, e essa é a reviravolta do argumento de Romero, a cidade
hispânica "racional", no dizer de Sérgio
Buarque, era militarizada e disciplinada
mais para evitar a "mistura" do que para
evitar as revoltas. Já as cidades que os portugueses criaram nos primeiros séculos da
colonização se fundaram por princípios
mais "pragmáticos", o que permitiu ao
agrarismo senhorial perfazer um ciclo
completo, no qual os senhores teriam aceito a formação de uma nova sociedade e, diz
o autor, "de uma nova cultura". Aqui é impossível não pensar que o argentino se
aproxima das idéias de Gilberto Freyre,
sem entretanto compartilhar de seu culturalismo regressivo.
O Brasil geralmente aparece no livro integrado, porém como exceção. Pois aqui,
desde o início e até muito recentemente, o
rural era o centro ideológico, e não a cidade. Essa proeminência do "campo" sobre a
"cidade", do amor à vida rural das elites
proprietárias no mundo luso-brasileiro,
assinalou a diferença e permaneceu mais
ou menos intacta até que as transformações externas, ou seja, as mudanças do capitalismo em fase de acelerada industrialização em fins do século 19, modificassem o
quadro, instituindo uma sociedade progressivamente mais urbana e dependente
da rotação do capital internacional, o
mundo "mercantilista e burguês" que definitivamente incluía o Brasil como zona periférica -como Caio Prado Jr. mostrou algumas décadas antes e o historiador argentino repete.
Sérgio Buarque
Assim, nossa "rede
de latifúndios" anti-urbana vai progressivamente -e com uma velocidade espantosa- se aproximando da "rede de cidades" que os espanhóis e "criollos" construíram depois de destruir a vida urbana
do mundo pré-colombiano. Essa "dialética" de Romero pode muito bem ser comparada à famosa tipologia buarquiana do
"ladrilhador" e do "aventureiro" caminhando para sua dissolução por meio daquilo que o historiador brasileiro via acontecer no processo de urbanização -que
"mataria" pouco a pouco o "homem cordial", a grande criação do mundo rural,
agregado, isolado e dependente.
Mas isso é apenas o começo. No final, este livro constitui uma grande e profunda
história da América Latina escrita do ponto de vista de seu foco mais ativo. Uma história que se organiza a partir do comportamento e das ideologias gestadas nos campos de decisão urbanos.
O que o historiador pretende é elaborar
esquemas válidos para compreender um
grande processo e estabelecer uma periodização comum à situação colonial e pós-colonial do continente -isso por meio do
princípio dos impactos comuns recebidos
por todas as áreas que compõem o mundo
das cidades e também as respostas que ela
ofereceu a cada uma de suas crises. Quem
ler verá: nós e nossas cidades somos parte
da América Latina.
Francisco Alambert é professor de história da cultura na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
América Latina - As Cidades e as Idéias
422 págs., R$ 50,00
de José Luis Romero. Tradução de Bella Josef.
Editora UFRJ (av. Pasteur, 250, salas 100 e 107,
CEP 22290-920, RJ, tel. 0/xx/21/2541-7946).
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